Macho de todo jeito

Apesar de morar a cinco quilômetros da cidade, Marcílio visitava a zona urbana algumas vezes ao dia, ouvindo histórias, dispondo-se a ajudar os conhecidos e bebendo alguma cachaça no bar do Maneco.

Os trejeitos gentis, a solicitude e a capacidade de resolver problemas rapidamente tornaram-no bem quisto. Não que fosse bonito ou elegante ou inteligente, mas o corpo musculoso despertava interesse nas mulheres solteiras – e casadas – quando passava pelas poucas ruas do lugar.

Os jovens pretendentes, namorados, noivos e maridos não escondiam os ciúmes. Se precisavam de alguém para trocar a lâmpada, Marcílio aparecia. Se um trabalho de carpintaria se fazia necessário, Marcílio chegava com as ferramentas indispensáveis. Se uma instalação hidráulica ou elétrica dava problemas, ele os resolvia em três tempos assim como solucionava pequenos desvios arquitetônicos. Até mesmo experiências culinárias deslanchavam perfeitamente se Marcílio opinava ou ajudava no preparo.

As gentilezas e os auxílios prestados assumiam caráter secundário na imagem de Marcílio, cuja fama provinha de sua coragem. Numa feita, expulsou da cidade um filhote de leão segurando-o com uma mão e, com a outra, acenando para as mulheres nas calçadas e debruçadas nas janelas.

Certa vez, um touro escapou do caminhão que o transportava para o rodeio. Cansado, o motorista estacionara na praça da igreja, bebera uns goles de cachaça artesanal, sem almoço e sem nada de peso na barriga, tirou um cochilo. Alguns garotos enfureceram o animal mostrando-lhe panos vermelhos.

O bicho arrebentou a porta, pulou na rua e correu atrás dos moleques, Juca do Caju, os pés do Diabo, entre eles. Convidara os amigos a importunar o touro, porém não calculou que as travas do caminhão se rompessem.

Começou a gritaria pela rua. Sem saber para onde ir, entrou na rua da escola no injusto momento da saída. Marcílio apareceu do nada, jogou-se em cima do bicho e só o soltou – ele e o animal caíram no chão – quando o motorista, acompanhado de moradores segurando pedaços de pau, foices, machados, espingardas e cordas, prendeu-o novamente na carroceria.

Por fim, o caso da cobra. Jogando conversa fora, bebendo no bar do Maneco, Marcílio avançou sobre uma cobra que apareceu na praça. Os senhores que jogavam dominó numa mesinha embaixo de uma sombra densa convenceram o padre a ovacionar o herói.

- Se a cobra morde uma criança? Argumentava o mais velho do grupo.

- Se mordesse um de nós? Até a cidade, nessa estrada? Já poderia encomendar a alma e adiantando o expediente com São Pedro.

Gentileza, solicitude, coragem, força. Inconformados, maridos, noivos, namorados e pretendentes se reuniram. Definiu-se a finalidade do plano: mostrar, demonstrar, provar e comprovar a covardia de Marcílio.

Estouraram bombas, deram tiros de espingardas e de revólveres, arrastaram correntes ao redor da casa durante a noite, simularam uma invasão de bandidos ao sítio, fizeram aparições truculentas enquanto ele bebia no bar ou na roda de senhores da praça da matriz, derrubaram as cercas, tocaram fogo no galinheiro, cortaram a energia elétrica numa noite chuvosa, postaram cartas anônimas com ameaças. Chegaram a contratar uma mulher grávida de Belo Horizonte para apresentar ao padre. Se não conseguiam provar a covardia física, comprovariam a fraqueza moral.

O padre riu dos argumentos de um dos rapazes e, sem muito esforço, obteve a confissão da moça que mostrara o pacotinho de dinheiro que recebera com a aquiescência do marido.

A encenação fracassada extrapolou os limites quando a mulher, revirando-se em gritos:

- É agora. Vou parir. Minha Nossa Senhora!

- Não blasfeme! Repreendeu o padre, olhando-a com reprovação. Já não basta o teatro, a mentira? O que... Chamem Joana. Chamem dona Joana.

Joana, parteira de mais de trinta anos de experiência, empurrara grande parte dos moradores na vida.

Sobe em cavalo, desce de burro, procura charrete. Depois de algumas horas descobriram que a parteira saíra a visitar uma tia de muito longe.

Os homens entreolharam-se. Naturalmente preocupados. Se acontecesse alguma coisa com a mãe? E com o filho? O marido apareceria imediatamente e acabaria com todos. O mais paciente dos amigos designado a montar guarda na porta da parteira. Assim que chegasse, do jeito que chegasse, levada imediatamente à casa paroquial. Inicialmente controlada, posteriormente desconfortável e atualmente desesperada, a gestante virava os olhos, suava, aplicava socos ar, gritava e remexia as pernas inexoravelmente.

Deram dez horas, onze horas, meio-dia, duas e quinze, três e trinta, quatro e dez. Às cinco, como as esperanças cambaleassem, o padre voltou para a multidão que se aglomerava na praça:

- Vamos ter de resolver isso. Aqui e agora.

Silêncio, seguido de murmúrio.

- Dona Rosinha vai orientar a Francisca.

- Também preciso de um homem muito forte. Em caso de emergência, concluiu dona Rosinha.

- Marcílio vai acompanhá-la. E seja o que Deus quiser, benzeu-se o padre.

Pedisse-lhe para enfrentar cinco touros, entrar numa caixa de cobras ou fazer quarenta cercas de arame farpado. Mandasse-lhe trocar toda a instalação elétrica de uma casa ou ordenasse-lhe a construção de um prédio.

O povo aplaudiu intensamente. O marido de dona Rosinha:

- Rosinha vai ser guiada por Deus. Você não está sozinho, Marcílio. Vai estar lá para resolver qualquer probleminha.

A bolsa rompida, os lençóis encharcados, um cheiro estranho e pingos de sangue transformavam o quarto numa recepção do desconhecido. Ali entraram dona Rosinha, Francisca e Marcílio.

Dona Rosinha apontava os instrumentos improvisados com os quais abria caminho à nova criatura.

Justamente quando a cabeça da criança divisava a prisão do útero e a liberdade mundana, deixando os olhos saltarem como bolas de gude, Marcílio sentiu a garganta formigando, o quarto girar, as mãos tremerem, um frio na barriga, uma moleza nas pernas, um cheiro enjoativo e uma falta de ar.

- Valei-me minha Nossa Senhora!

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 11 de setembro de 2008.