TANTOS
Eram ruas largas, um corre-corre infernal. Semáforos fechando, outros abrindo, tantos vocês atravessando, tantos eus passando.
Uma multidão que se esbarra a cada metro percorrido, cada um com seus sonhos, seus desenganos, com suas contas para pagar no final do mês. Uns ouvindo no walk-man músicas agitadas, alguns com uma trilha sonora mais calma. Quantos eus passando com outros tantos vocês. Quanta gente parecida e diferente ao mesmo tempo. Gente comum que se torna você quando não é o seu próprio eu quem fala.
Realmente, tantos vocês com seus próprios eus, cada um com suas próprias perspectivas, caracteres e dignidades diferentes.
O mundo tão extenso, onde muitos vocês e vários eus se encontram e desencontram, encontrei você. Logo de cara, o meu eu se encantou com você, antes mesmo de conhecer o seu eu. Parece que tudo já estava programado no calendário do céu, porque nunca tinha reparado que no meio de tantos vocês, tivesse um você tão especial, você!
A partir daí, começamos a compartilhar segredos mais íntimos, você me contou que gostava de poesia e sentia vontade de chorar em filmes tristes, mesmo que jurasse na frente dos amigos que era fricote feminino se emocionar. Lógico que não fiquei só ouvindo você, eu também falei, contei as façanhas do primeiro beijo, ao tempo em que você admitiu já ter sofrido por amor, contei de como andava triste estes últimos dias por ter brigado com minha melhor amiga, ao mesmo instante em que você assumiu que se considerava virgem por não ter sido com envolvimento.
Perguntei-me por que, no meio de tantos vocês, eu só fui encontrar você agora! De como foi bom quando eu (o meu você na flor da pele) encontrou o seu eu.
Logo a gente, você e eu, que nos achávamos realizados por sermos independentes, únicos e donos dos nossos próprios narizes, contentamo-nos quando percebemos que as seis letras que nos uniam, VOCÊ/EU, não seriam mais fortes do que as três que substituímos, nós.
Foi daí que surgiu nós, você e eu. Construímos os sonhos mais peculiares, inseguranças, alegrias e dia-a-dia. Duas vidas que viviam entrelaçadas. Conheci sua família, tantos vocês e tantos eus. Conheceu a minha, mais tantos eus e mais tantos vocês.
Nós vivíamos felizes (se aquilo era felicidade, meu eu pode dizer que amou você, e você amou o meu eu).
Numa tarde de começo de verão, nós discutimos. Aí veio uma tarde sem flores, e discutimos. Em seguida, uma tarde com perfume de rosa, e discutimos.
Voltou o verão, e nós já estávamos desgastados. Depois de muita conversa, voltamos a ser, apenas, eu e você.
Você saiu da minha vista deixando o meu eu chorar, entrou na correnteza de vocês e desfez todo e qualquer vestígio de nós.
Eu mudei, amadureci e hoje trabalho com turismo. Passo a vida levando vários vocês e diversos eus para todos os lugares do mundo, promovendo encontro das pessoas com lugares.
Às vezes, da janela da minha sala, o meu eu ainda procura você na multidão. Mesmo sabendo que foi amor de adolescente, gosto de lembrar. Que apesar de sermos tão diferentes, éramos iguais. E que, apesar de ter sido, eu e você, já fomos um dia nós, ao menos isso.
Madalena Sofia Galvão Viana
29.01.2002