Comendo pipocas na cozinha branca e fria
Sozinha com minhas panelas e meus pratos refratários estou sentada na cozinha. Fico pensando em minha avó cozinhando no fogão de lenha, as panelas enegrecidas, lavadas com sabão de cinzas. O forno de micro-ondas apita e eu tiro as pipocas amanteigadas e me sento a mesa de fórmica pensando na vida.
Minha avó tinha cinquenta e cinco anos quando morreu e era uma velha e eu querendo começar a viver. Agora. Tem cabimento a vida? E não é que nessa idade ainda penso em safadezas? Acho que foi a televisão quem fez a minha cabeça, ou a internet e a cabeça de minha avó foi feita pela religião.Minha avó era viúva e usava um coque sem nenhum glamour. Eu não. Trago os cabelos bem curtos como se ainda fosse moleca.
Minha cozinha é fria, apesar do calor que faz lá fora. Mas a dela era tão quente... As achas de lenha queimando faziam um fogo vermelho de pura paixão e queimava tudo o que ardia deixando a brasa quente virar carvão. Meu fogo é azul de um azul tão pálido que tenho medo que se esvaia.
Meu tio era carvoeiro. O meu pai era padeiro. E eu, o que eu sou? Nem ao menos sei quem sou mas muita coisa sei que não sou.
Minha avó fazia doces e tingia com papel crepom. Ela coloria os doces mas a vida era em preto e branco, sem rouge ou batom. Eu tenho os cabelos vermelhos. Ora enrolo, ora estico. Quando me lembro do coque de minha avó quero arrancar meus cabelos fazê-los voar ao vento, ficar careca de puro desencanto. A vida mudou ou continua tudo igual? Minha avó enchendo de carne moída bem temperada as tripas tão bem lavadas do porco, para fazer linguiças. que eu espetava com um alfinete para tirar o ar. Eu comendo pipocas , milho arrebentado dentro de um saco de papel. O milho no saco, o saco no forno e o fogo apagou. Todas as duas tão sozinhas, eu sem filho ou marido, ela com tudo e sem nada, tão cedo esticada no frio caixão de madeira, toda coberta de flores, molhadas com água de sal.
Tem gente que acha que eu sou esquizofrênica só porque crio gatos. E daí? Eles só existem na minha imaginação. Não fazem sujeira, não fazem barulho, não custam dinheiro ,nem gemem na noite escura andando pelo telhado. Não incomodam ninguém. Minha avó criava ratos no porão. Os ratos roeram os meus sonhos ainda menina. É por isso que eles são tão esfarrapados, assim meio adoidados. Eu já quis ser artista de circo, trapezista. Minha avó ria de mim. Dizia que eu seria matrona, como ela. Não sou não. Sou estabanada, sou lerda, sou nada, mas não sou escrava do fogão. Um dia eu deixei meus cabelos crescerem e fiz um coque. De noite tive pesadelos: piolhos fazendo pique-nique em minha cabeça.
A cozinha de minha avó cheirava a fumaça. Mas era um cheiro bom. A minha cheira incenso e tem flores no fogão. Fiquei órfã de avó muito cedo, não aprendi a envelhecer. A velhice é tremendamente ridícula. Eu tenho um retrato dela, minha avó na janela, ao lado de meu avô. Cara de mau, enfezado, como se fosse pecado sonhar com o céu nesta vida. Pensando em suas bonecas, com as quais nunca brincou, o jeito dela era triste, como se da mãe estivesse sentindo uma grande saudade. Por certo lá dentro esperando, a comida por fazer, as trouxas para lavar, as crianças berrando, as camas para arrumar. Eu juro que nunca quis um destino assim para mim. E se eu pudesse mudava a vida que ela levou.
ô merda!!! ô merda! Eu fico aqui lamentando a vida que ela levou, mas que raio de porcaria é a vida que levo eu? Tem muita diferença o que sou do que ela foi?
Acho que fico tentando encontrar desculpas. Tentando achar que sou mais feliz do que foram as mulheres de minha família que vieram antes de mim. Elas se contentaram em ser tão comuns! Eu me recuso a ser banal. Mas afinal de que adianta essa minha recusa se no final tudo o que me resta é esta cozinha branca onde como pipocas frias, tão sozinha como qualquer uma outra mulher nesta vida?
Quando eu era menina e ajudava a minha avó a assar pães de queijo no forno a lenha do terreiro, sonhava ser princesa. Rapunzel em minha torre de pedras a espera do prìncipe libertador. Mas se naquela época eu nem tinha dor! Do que eu queria me livrar?Dor eu tenho agora, mas agora os príncipes morreram, de câncer ou de aids e eu nem mais tenho, nem avó nem avô.
No fundo da casa tinha um quintal e no fundo do quintal passava um rio que a gente avistava da porta ou da janela da cozinha. As águas que por alí passaram nunca mais voltaram e nem voltarão. De minha janela vejo a vida passar e nada, nada vai voltar. Nada será como antes, nada será como agora, mas tudo continua igual, como se tudo tivesse parado um dia, no tempo, no espaço.
Eu usava uns brincos vermelhos de princesa que eu apanhava das trepadeiras que subiam pelas cercas de bambu. Hoje tenho uns cristalinos ,bem brilhantes ,que comprei em uma joalheria em um shopping em Beagá.
E daí?
É assim que vejo a vida. Sentada na minha cozinha, nada sendo como antes, tudo igual ao mesmo tempo. Minha avó, lá me esperando...e eu aqui, fazendo hora esperando a vida passar.
(este texto aqui transcrito como crônica é um poema denominado Cozinha e faz parte do meu livro de poesias inédito: Mapa da Vida)