O ESPÍRITO E A MEMÓRIA
Sempre achei importante passar para as crianças, todas as informações de uma forma simples e verdadeira, até porque por mais que achemos que elas não entendem o que estamos falando, acredito que estão nos testando o tempo todo e que elas tenham uma consciência muito mais apurada das coisas que nós insistimos em chamar de ingenuidade.
Assim tenho agido no decorrer do tempo, tanto com meus alunos, de diversas idades diferentes, quanto com os filhos de meus amigos e também com os meus. Agimos assim em relação a todos os assuntos, desde os mais banais até os considerados tabus, como o sexo e a morte.
A primeira filha a chegar foi adotiva, a branquela que nós chamamos de Ariel. Ariel não por causa do sabão em pó e nem por causa de ser branquela. Não. Aliás, o nome foi dado antes do lançamento nacional desta marca de sabão. O nome veio por dois motivos. Primeiro por ser o nome de um anjo e segundo por começar com a letra “A”. O nome de anjo menos esquisito que encontramos, começado com esta letra, foi este. Mais isto não vem ao caso no momento, pois o diálogo que gostaria de contar foi com meu terceiro filho, na verdade o quarto se contarmos a Ariel.
– Papaizinho! Brinca comigo? – falou-me Luquinhas deitado ao meu lado em minha cama e de sua mãe.
– Claro filhão! – respondi de pronto.
As frases ditas por Luquinhas estão traduzidas do criancês para o português, para efeitos didáticos, porque apesar de serem engraçadíssimas suas construções, normais para uma criança de quase quatro anos de idade, as vezes elas se tornam quase que inteligíveis, por isso resolvi traduzi-las ao invés de anexar um glossário a este conto.
– Do que você quer brincar? – continuei.
– Cadê a Ariel? – perguntou-me
– Está lá na caminha dela.
– É que o brinquedinho dela está aqui.
– É que ela estava aqui brincando com o papai.
O brinquedinho a que Luquinhas se refere é um velho pingüim vermelho de borracha e Ariel a quem nos referimos até então, é nossa cadelinha, uma mestiça de poodle com RI. Tendo o pai verdadeiro como RI e sendo portanto uma filha de uma p... poodle.
Neste momento, Luquinhas pegou a boca do bichinho e começou a falar que se fosse o bichinho. Trocaram algumas palavras e em seguida veio a proposta.
– Pai, fala você com o bichinho agora.
– Para eu conversar com ele?
– Não papaizinho, para ele conversar comigo.
Peguei o bichinho e comecei a articular a sua boca de borracha e falar com uma voz que imaginei ser de um minúsculo pingüim vermelho.
– Oi! Como você vai? – perguntei.
– Vou indo. E você ? – devolveu-me.
– Estou bem. Você quer conversar?
– Claro. Que bichinho que você é?
– Sou um passarinho.
– E qual é o seu nome?
– Pingüim.
– Pinguinho?
– Não, pingüim.
– Ah bom. Pensava que era pinguinho porque você era pequenininho.
– Até poderia ser mesmo.
Neste momento Luquinhas tentava colocar o lacinho de Ariel, na cabeça do pingüim. Na verdade acabara de conseguir.
– Você é menina? – perguntou ele.
– Não.
– Então porque está de lacinho rosa na cabeça? – Sorriu ele retirando o aparato preso por um elástico.
– Não pense que eu estava gostando não.
– Você é engraçado. – Falou Luquinhas batendo na cabeça do bichinho.
– Não acho graça nenhuma ficar batendo na cabeça dos outros.
– Mas você sente dor?
– Não, mas eu não gosto.
– Ah Bom. E o que é isso na sua bochecha.
– É um furo.
– Mas como você furou isso?
– A Ariel que me mordeu.
– Mais não sai sanguinho vermelho?
– Não. É que eu sou brinquedo. Sou feito de borracha.
– Mas que feia a Ariel não é? É feio morder as pessoas.
– As pessoas é feio mesmo, mais eu sou o filhinho dela e os cachorrinhos não conseguem segurar nada com as patinhas e tem que morder as coisas para levar para os lugares.
– Mas você não é filhinho dela. Você não é parecido com ela.
– Mas eu sou que nem a Ariel para o seu papai. Ela é filhinha dele também, só que adotiva.
– Ah bom. O papai e a mamãe a acharam e trouxeram aqui para casa né. E você quem trouxe para cá?
– A vovó.
– Não é sua vovó, é minha mamãe.
– Eu sei que não é, mas como eu não tenho vovó e eu sou filhinho da Ariel é como se fosse não é?
– Não sei.
– E também se fosse você iria ser meu tio.
– Eu não quero ser tio. Sou muito novinho para ser tio.
– Você é engraçado.
– Você voa não é?
– Não eu sou de brinquedo.
– Mas e quando a Ariel joga você? – risos de todos.
– Nesse caso vôo mesmo. Só não gosto quando eu bato a cabeça.
– Mas você sente dor?
– Não, mas fico tonto.
– Engraçado isso.
– É mesmo.
– Você já está velhinho também né.
– Tudo fica velho não é Luquinhas. As pessoas quando ficam velhas morrem e são enterradas.
– Mas a mamãe falou que você logo, logo vai para o lixo.
– É que os brinquedos muito velhos vão para o lixo. Mas também qual a diferença entre ser enterrado e ir para o lixo.
– Mas um dia a gente se encontra lá na escolinha do céu, onde as pessoas e os bichinhos aprendem a ser o que vão ser quando vierem aqui para o nosso planeta.
– Mas eu não tenho espírito.
– Ah, não? E como você vive depois que morre o corpinho?
– Os bichinhos não têm espírito. Na verdade os de brinquedo não têm e eles sobrevivem na memória de seus donos e de seus amiguinhos até serem esquecidos.
– Poxa, pinguinho você é legalzinho mesmo. – Deu um beijo no bichinho – Vou pedir para a mamãe tirar uma foto sua antes de jogar você no lixo, assim você poderá viver para sempre na nossa memória.
E ainda confundimos ingenuidade com sabedoria...
Luquinhas saiu, o bichinho caiu mudo e eu fiquei ali, na cama. Chorando como criança sem saber nem porque. Talvez por lembrar de quem não teve os brinquedos para chorar ou dos meus que foram jogados no lixo e apagados bruscamente de minha memória.
É, a morte não é brincadeira.