O sentimento, a razão e outro sentimento

Tenho lembranças que fazem brotar sentimentos de muitos tipos, bons, maus, indefinidos. Alguns, repasso todos os dias, para acelerar os processos que desencadeiam os gestos. Infelizmente, sou um retardado emocional. Não é como pensam de mim os outros, acostumados às minhas reações intempestivas. Nessa característica, porém, justamente nessa, reside o meu problema.

Minhas verdadeiras alegrias são atrasadas, bem como as mágoas, as tristezas e as raivas. Não seriam as que demonstro diante das situações? Não são! Sou dependente dos litígios da racionalização, que me consomem, depois, na companhia de um copo. Minha reflexão é conflituosa porque é impossível antecipar a emoção que prevalecerá antes de repensar os fatos. Esmiuçados, levam-me de lá para cá e, às vezes, para lá de novo.

Um dia, esmurrei um sujeito na rua que se virou para mim, ao passar, e me chamou de “gostoso”. Como poderia que eu, um orgulhoso da própria masculinidade, deixasse de reagir ao desplante de uma bicha louca, ainda por cima com o testemunho dos transeuntes que se viraram risonhos? O ódio apareceu instantâneo, enérgico. Fugaz. Quando virei a esquina, esqueci o veado e o nervosismo, a despeito da mão permanecer latejante e ensangüentada. Depois, em minha casa, oculto por trás do “Memórias, Sonhos e Reflexões”, de Jung, reprisei o incidente para descobrir que me sentia, intimamente, orgulhoso da atenção de que fora alvo. Reprimi vigorosamente a idéia, reafirmando, mentalmente, que um homem não deve ser vítima dos desvios sexuais de outro homem.

Larguei o livro sobre a cabeceira e enchi o copo outra vez. A imagem do gordinho afetado, de cujo semblante só registrei o nariz partido, aos poucos foi ganhando a minha simpatia, porque ele não me vira tão velho como pensava estar. Nem barrigudo, ou meio careca, ou desalinhado, ou desengonçado, não, o desgraçado não percebeu nada disso em mim!

No dia seguinte, refiz o caminho da cena do crime. Do outro lado da rua, sentado num banco ao pé de um vimeiro, o cara fitava o cimento com o queixo apoiado nas duas mãos. Avancei em sua direção, abrindo passagem entre os carros parados no semáforo. Antes de alcançar o outro lado, ele me viu e num repente levantou-se. O corpo maciço respondeu com fragilidade ao esforço de correr, mas só o suficiente para atingir metade da pista, onde foi colhido pelo ônibus que não conseguiu frear.

Então, entre abalado pelo sentimento de culpa e pela frustação de não ter conseguido avaliar meus sentimentos na hora certa, submeti-me à terapia da solidão, que sigo religiosamente, neste quarto trancado de hospício.