Madrugada

Madrugada. Estou assistindo a solidão da noite apoiado no parapeito da janela. Insisto em observar alguma coisa além da paisagem inerte que, exceto as folhas de algumas copas balançando, se encena diante dos meus olhos. Morta, morta, sem nenhum desejo humano, sem nenhuma mobilidade essencial à vida, desdobra-se a noite, lentamente, até dar lugar, daqui a algumas horas, ao arrebol vindouro, engolindo as trevas que, abdicadas, darão lugar a mais um dia. Indiferente, me vejo obrigado a tentar o sono contra minha vontade, pois rigorosamente não há nenhuma modorra pertinaz, enquanto olho distraidamente os vácuos negros.

Então, para ganhar tempo, ou perdê-lo, vou até a cozinha preparar um café sem açúcar, quem sabe experimentar a madrugada com um sabor amargo na boca, na garganta, nas entranhas do silêncio e da loucura; a docilidade, nesse momento, não me seria aprazível e nem confortável. Entretanto, não encontro o pó, o bule, o coador, essas coisas necessárias, e não insisto em procurá-los para não acordar minha mãe, meu pai, que dormem profundamente, esquecidos nalguma cama grande dentro da casa dentro da cidade dentro do mundo, dentro, enfim, da vida. E, bem longe, também não incomodar ruidosamente o silêncio, o qual é grande, imenso, instigante, às vezes insuportável. Volto-me à janela, conformado e sem café, volto-me às folhas das copas que, brisadas, leves, balançam docemente, como se dançassem ao som uníssono da aragem matutina, desafetadas.

Seria um momento oportuno para quem sabe acender um cigarro, tragar fundo o tabaco, pensar a vida de forma meticulosa, divagar muitas idéias sobre muitos mistérios enquanto, lentamente, o cigarro extinguisse entre os dedos, e todos dormissem intocáveis. Mas não fumo, nunca fumei, e fico olhando com alguma estranheza alegre agora um ponto qualquer que meus olhos fixaram, e é longe, muito longe mesmo. Parece uma luzinha mirrada no centro da escuridão, talvez de alguma casa, algum morador que provavelmente levanta cedo, que literalmente madruga, prepara resignadamente aquilo que será seu almoço daqui algumas horas, e espera o dia avançar para poder ir pegar o ônibus e levá-lo, com tantos outros trabalhadores, às muitas lavouras da região, de muitas monoculturas. E, em relação aos bóias-frias, essa cidade interiorana é pródiga.

Exprimo um bocejo. A noite vagarosamente cede lugar ao alvor. Agora distingo perfeitamente: a luz era mesmo de um cômodo qualquer de qualquer casa distante, dormida no esquecimento de minhas retinas fatigadas, como dizia o poeta. O poeta. Hora de ir dormir. Cansado e satisfeito, apago o abajur, fecho a janela e me estiro na cama, sonhável.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 09/09/2008
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