Gold finger
GOLDFINGER
Do livro Castelo de guardanapos
Você chega aos cinqüenta anos e nada, nunca mais, será a mesma coisa. É uma idade que dá para contar em séculos, meio, o que impacta até o mais despercebido ego. A idade traz na mala de garupa muito mais do que uma eventual e simples aposentadoria. A vida cobra pesados ônus, na razão direta das gastanças físicas, intelectuais e financeiras. Mas cobra também pelo simples fato de estarmos vivos e ousarmos desafiar a idade. Antes éramos velhos aos cinqüenta, hoje podemos ser quase jovens ou metidos a isso. Há homens que justificam plenamente esta versão. Em nossos encontros anuais de Uruguaiana, observamos companheiros cuja cor dos cabelos em nada se alterou, o Wieczorek, por exemplo, ou o porte do Nogueira, que até hoje chama a atenção de seu antigo professor de geografia. Na balada dessa pretensão, as mulheres, felizmente estão anos-luz à nossa frente. Há um grupo de amigas da minha mulher, inclusive a própria, quase um clube, que se intitula PQG (Pensa Que é Gatinha) e curtem muito isso, mas dá um trabalho danado conferir calorias, medir índices de gordura e outras ginásticas, além das atividades de mães e profissionais. Tudo dá trabalho a partir da meia-idade.
Dia destes chegou a minha vez. Busquei no plano de saúde um especialista. Ninguém conhecido meu ou de meus amigos. Urologista. Marquei consulta. Na noite anterior não dormi e na manhã do dia fatídico experimentei acordar mal-humorado. Jamais sou mal-humorado de manhã. Tenho várias testemunhas, todas femininas que atestam isso. Criei pretextos para não acordar, depois para não sair de casa. Sentia-me velho, um traste, indigno de vestir as calças que até então atestavam a minha condição de homem. Na porta do edifício de casa fingi que esqueci as chaves do carro, na porta do consultório quis voltar, deixar para lá, não tinha nada mesmo, a saúde estava como nos velhos tempos. Entrei. Na porta do consultório vacilei. Não uma vaciladinha qualquer como aquela quando o sinal troca do verde para o amarelo. Uma grande vacilada, como uma falha na hora H, brincando de bombeiro com a Luma. Mas enfim, não era o único homem a fazer exame de próstata.
Entrei. Havia dois senhores quietos, quase sem respirar para não serem notados, olhos fixos em revistas que até poderiam ser sem letras. Não queriam ler, queriam esconder os olhos. A educação me ensinou a dar bom dia. E fiz isso, mas nem eu ouvi o som da minha voz. Por outro lado, bom dia quando e onde, cara pálida? Sentei e busquei desesperadamente uma revista, qualquer uma. Sabe revista de consultório? A mais nova mancheteava: Caras-pintadas derrubam Collor ! Acho que uma das outras era O Cruzeiro. Não importava nada disso, queria, como todos os desafortunados presentes, esconder o olhos. Por prudência ou discrição, o consultório não tinha recepcionista. Já pensou, você ali, mortificado, e uma secretária lhe olhando, séria, talvez com pena, vez por outra rindo, sabe-se lá de quê, ruminando um chiclete? Seria muito pior.
A porta se abriu e eu gelei. De lá saiu um cidadão, mais constrangido do que nós da sala, boné enterrado até os olhos, olhando para algum ponto do carpete, ou para o infinito além do solo. A seguir saiu o médico. Imediatamente olhei para o tamanho de suas mãos. Meu Deus! Porque não busquei alguém conhecido? O cara era enorme. Como um sujeito daquele tamanho se propõe a passar anos na universidade, gastando os olhos da cara, normalmente explorando os pais, só para se tornar urologista? E sai de sua sala sorrindo e dando bom dia! Só pode ser sádico. Vacilei de novo. O seguinte, ou a próxima vítima, foi chamado. Levantou-se da cadeira como uma ovelha cansada de se debater contra a fúria dos cães selvagens, entregue, arrastando-se penosamente até ser recebido à porta por aquele monstro. Fecharam-se.
Na sala de espera restava-mos dois, olhos fixos nas páginas da mesma revista de horas atrás. Então nos olhamos com profunda sinceridade. Ele tinha mais ou menos a minha idade e parecia em boa forma. Constrangimentos à parte, conversamos sobre o que nos levava a passar por aquilo, e que estávamos ali mais em respeito aos nossos familiares, etc. E variamos os assuntos, e seguimos conversando até o elevador, depois tomamos um cafezinho no bar do prédio, acabamos combinando um jantar com as famílias e um treininho da basquete no final de semana. Nos despedimos, cada um pegou seu carro e nunca mais nos vimos. O exame! Pela quarta vez, por motivos diversos foi transferido. Pior é que digo em casa que está tudo ok. Acho até que está, mas quem garante? Aliás, é mesmo da garantia que estou fugindo. Sei que não posso adiar ad eternum, até porque a eternidade pode chegar antes.
Jair Portela