Fala da escravidão

Fala da escravidão

by-Aisha

I

(...) Acorrentados pelo próprio sangue, fomos mantidos escravos e levados por nossos irmãos a um destino que desconhecíamos desvendando-se na eterna prisão onde do reflexo do que éramos, restaram apenas dejetos dos humanos que fomos e que hoje vê encarcerada a dignidade e honra que não conhece mais. (...)

II

(...) O mar, tão grande quanto a dor que toma o que sobrou da alma que habitava esse corpo antes livre. O mar e seus mistérios, o que haverá além do mar?... Enjaulados como animais, aglomerados, choros e gemidos abafam o canto das ondas que vêm morrer nas areias do meu chão... Meu chão, minha casa, minha terra, hoje já não tão meus quanto foram ontem. Ontem eu corri livre por meu chão que era tão negro quanto eu; hoje meu chão perdeu a cor ao ser pisado por pés que nunca lhe pertenceu, enquanto a cor que sempre foi e sempre será só minha, traz as manchas do sangue que tenta secar nas feridas abertas da captura. E o mar, que mistérios trará o mar?... (...)

III

(...) Enfileirados e acorrentados sob a mira de chicotes que teimam em açoitar-nos somos levados para fora do que era até então nossa prisão. Olho ao redor, a mãe chora e grita a dor do filho que traz amarrado em si. Chora também o filho da mãe como que adivinhando o que estaria por vir, choro eu a dor da mãe e do filho e choro também a minha dor. Negros açoitados, acorrentados, tentam agora adivinhar qual será seu destino...(...)

IV

(...) Fora das jaulas não há liberdade para o negro, as jaulas nos acompanham agora em forma de correntes que nos amarram uns aos outros limitando nossos passos. O negro já não corre mais com o vento e o vento se escondeu com medo de ser levado com o negro que sob ferrolhos e correntes desconhece o destino que chega. Não há liberdade fora das jaulas! Não há mais liberdade para o negro e sua casa já não é mais sua! (...)

V

(...) Ali, de onde o mar parece terminar, vem a fera faminta rasgando o mar com sua fúria, assim como nossa pele negra é rasgada pelo chicote que canta sua própria melodia - triste melodia - ao nos açoitar. Vem a fera faminta dilacerando o mar enquanto tenta nos alcançar. Ouço o grito do mal dando nome a fera: “Navio tumbeiro”! Tão negro quanto a pele do negro, minha pele, minha cor, minha história. “Navio tumbeiro”! Eis o nome da fera! (...)

VI

(...) Eu que não trago vergonhas, eu que carrego a nobreza dos meus ancestrais, eu e todos os que comigo estão agora sob a mira da fera que vem enfurecida querendo nos devorar. “Navio Negreiro”! É negra a tumba que nos abrigará devorando nossas almas, negro de luto, negro de pátria. Negro que chora ao ver a mãe que chora e grita a dor do filho que traz amarrado em si e chora também o filho como choro eu a dor da mãe e do filho e também a minha dor, porque mais que a pele atassalhada, sinto a dor de ser arrancado da minha terra, casa minha, chão que nasci, pisei, trabalhei, corri e cresci sob o mesmo sol que sempre alimentou essa alma que soube sonhar enquanto ainda havia o sonho... (...)

VII

(...) Tumba flutuante, navio tumbeiro! Devorados pela fera, ultrajados, deformes pelos maus tratos, amontoados... Eu que corria livre pelas terras de minha história... Quiçá pudesse dormir ao menos mais uma noite sob a vigília das estrelas e da lua, céu negro como o negro que tanto o contemplou... Que me volte a sorte ou será esse meu fim? “Quero viver!” Esse é o grito do que resta de mim. (...)

VIII

(...) “Quero viver!” Não sei de onde vem esse desejo de vida diante da morte que vejo cair a minha volta. Rostos já deformados pela dor. Fome, desespero, escuridão... Corpos mutilados, corroídos pela praga são jogados ao mar. Restos humanos, amontoados, seguem empilhados no ventre da fera. Sem água e sem pão segue o negro sentindo as ondulações sem saber se há sol ou não. Onde estarão as estrelas minhas? Oh, saudades do meu chão! No ventre da fera não há vida, apenas morte e sofreguidão... (...)

IX

(...) Já não chora, nem tampouco grita a mãe a dor do filho, pois esse a fera já vomitou, o mar engoliu. Agora a mãe não chora, não ri, não sonha, apenas espera pela morte que a leve ao encontro do filho que o mar engoliu. Olho a mãe no canto do ventre da fera, olho a mãe que não chora e nem grita, olho os olhos da mãe, esses já não trazem sonho ou ilusão, não trazem vida... (...)

X

(...) “Quero viver!” Esse é o grito do que resta de mim. “Quero viver!” E nos olhos da mãe, a dor, a entrega pedindo pela morte. Enquanto grito pela vida, encontra meus olhos os olhos da mãe. Vejo paz em seu olhar, únicos olhos onde consigo ver a paz... No ventre da fera não ha paz, a não ser no olhar da mãe que agora me olha enquanto parte. Adeus a mãe, adeus ao filho e o mar torna-se também seu destino. Quero sonhar novamente e em meus sonhos, ouvir agora a mãe sorrindo o sorriso do filho enquanto o embala em seus braços... Quero meus sonhos de volta, “Quero viver!” Esse é o grito do que resta de mim. “Quero viver!” (...)

XI

(...) Não há liberdade para o negro! O sol tenta rasgar a pele do negro que trabalha a terra. Sob a mira de chicotes o negro não para, não pode parar. Submetido a castigos, já sem nome ou história, a lembrança do que era parece fugir-lhe... “Negro, quem és?” Pergunto mantendo-me agarrado à vida que parece querer fugir-me das mãos, assim como tentam fugir os negros da escravidão. (...)

XII

(...) “Não há liberdade para o negro!” Grita a besta com ferrolhos nas mãos, grita o tronco que o negro abraça sentenciado a castigos que quase sempre os leva a morte. E morre o negro assim como morre o gado. Prejuízo para o senhor, dor e lamento na senzala onde chora o velho, a mulher e a criança. Chora também o escuro da noite enquanto eu tento apenas não me esquecer quem sou; sou negro! (...)

XIII

(...) Negro sem vida, de história já quase esquecida... Sou negro! Na senzala, enquanto mulheres são violentadas, os negros fingem dormir um sono que dispersa. Mão atada, corpos amarrados, resta apenas o ódio a alguns enquanto outros choram não apenas suas dores, mas as dores que tomam os seus. Negro de corpo dilacerado, negro cansado da dor. Busco em minhas lembranças algumas das estrelas do céu de minha casa e tento não ouvir os choros de dor das negras da senzala diante da tirania do senhor e seus feitores. Qual será a história já quase esquecida do negro? Negro sem vida, de história já quase esquecida... Sou negro! (...)

XIV

(...) Pouco a pouco vem se ouvindo a fala da liberdade. Alguns se aventuram a adiantá-la, fogem e muitos até conseguem refugiar-se nos quilombos que se formam. E eu me pergunto, onde estarão nossos deuses, o que foi feito deles? Em rituais clandestinos, escondidos, deitamos em reza toda nossa aflição, todos nossos pedidos... Ainda peço pela mãe, que tenha encontrado o filho, peço aos orixás sem que as feras me ouçam, pois minha reza é proibida e traz castigos. Sonho escondido enquanto faço minhas rezas proibidas, enquanto clamo por Xangô meu pai. Ouço ao longe uma fala de liberdade, mas bem sei, não há liberdade para o negro... (...)

XV

(...) Aqui e ali vão sendo criadas as falas que pedem a liberdade do negro, mas por enquanto, o que há para o negro é apenas castigo, senzala, trabalho escravo, ferrolhos, troncos, feitores, senhores... Quero sonhar de novo e em meus sonhos encontrar minha casa, minha terra e por ela correr livre sem a dor de ser acorrentado... Quero a liberdade assim como quero viver e como quero meu chão, minha casa, minha terra. (...)

XVI

(...) Essa terra que construo com meu sangue não é minha e é preciso muito esforço para não esquecer quem sou. Sou negro! Sou aquele que grita pela vida, que sonha a liberdade. Sou negro e quero meus sonhos de volta, quero minha vida, meu mundo, meu chão. Olho as estrelas nesse céu de terra estranha enquanto ouço as falas que pedem por minha liberdade... Não há liberdade para o negro... (...)

XVII

(...) Vejo hoje meus irmãos festejarem e eu não consigo sorrir, apenas olho e espero pelo novo que vem. As correntes que nos prendiam já não nos prendem mais, a senzala se abre e saímos sem saber para onde ir. A nossa frente apenas a estrada sob nossos pés calejados. (...)

XVIII

(...) Os que não tem o corpo mutilado, levam um resto de alma dilacerada pela indignidade e injustiça vivenciada por gerações. Sigo pela estrada assim como seguem meus irmãos de raça, sofrimento e dor e a pergunta é a mesma: Para onde ir? O que fazer? Como sobreviver? Não há liberdade para o negro! (...)

XIX

(...) Fora das senzalas e correntes só nos resta a estrada e por ela vamos, caminhamos deixando para trás feitores, senhores, casa grande, senzala... Caminhamos buscando por nós mesmos, por quem somos... Caminhamos sob olhares que mesclam curiosidade e aversão... Vejo hoje meus irmãos festejarem e eu não consigo sorrir, apenas olho e espero pelo novo que vem. Negro, onde está sua liberdade? (...)

XX

(...) O negro canta seu último canto... Cansado deito meu corpo já velho na estrada que não mostra seu fim. Deito e termino meu canto. Vejo o olhar de paz da mãe que no fundo do mar reencontrou o filho que já não grita mais. Alegro-me e sorrio com a mãe e com o filho que agora sorri também e na paz do olhar da mãe e do filho vejo a liberdade do negro assim como vejo meu chão, minha casa, meu céu, céu negro como esse negro que com a mãe e o filho, parte agora reencontrando a liberdade que sua alma sempre pediu.

Aisha
Enviado por Aisha em 07/09/2008
Reeditado em 02/07/2013
Código do texto: T1166444
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