NEM TUDO É COMO PARECE...

Nem tudo é como parece...

®Lílian Maial

Todo ano, no sábado de Carnaval, acontece a saída do bloco “Cordão do Bola Preta”, no Centro do Rio de Janeiro. Esse ano, acordei cedinho para me aprontar e, pela primeira vez, não tinha combinado nada com ninguém. Desde o ano passado a minha vida deu uma guinada, mudei padrões, resolvi remexer em tudo, ou melhor, tive de remexer tudo. Assim, não pestanejei quando decidi brincar o Carnaval, nem que fosse um diazinho só.

Meu filho caçula, um companheirão, logo que soube que eu iria pro bloco, levantou da cama num pulo e foi se aprontar. Na véspera, eu havia passado no Saara (conjunto de lojas no centro da cidade, a preços populares), e comprado algumas perucas laminadas, outra de palhaço, confete, serpentina, espuminha em spray, gravatinhas de lantejoulas, um chupetão, enfim, algumas peças básicas para não gastar muito e não passar em branco.

O moleque se apoderou de uma gravatinha, uma peruca laminada, espuminha, confete e serpentina, e lá fomos nós para a Cinelândia.

No metrô, já notamos o quanto estava concorrido o bloco esse ano. Mas ao sairmos da estação, verificamos que estava muito cheio, apesar do horário bem cedinho, o que significava que ainda havia muito mais pessoas por vir.

Assim mesmo, fomos caminhando na direção da sede do Bola Preta, animados com a idéia de seguir o bloco cantando, dançando e brincando a valer.

Infelizmente não foi bem assim que aconteceu. À medida que íamos nos aproximando do miolo da Cinelândia, mais apertado ia ficando, mais difícil transpor os obstáculos de ambulantes, isopores, churrasqueirinhas improvisadas, enfim, um tumulto desnecessário, provocado pela desorganização da festa, pelo abuso dos ambulantes e pelo desrespeito das pessoas, que se acotovelavam de qualquer maneira, sem se importarem se machucavam quem por eles passasse. Se para um adulto já estava ficando complicado, para uma criança de dez anos aquilo devia parecer a filial do inferno. Um calor de sol de verão, a barulheira da multidão, o som da batucada do maior bloco do Rio, inúmeras barraquinhas amontoadas no meio do povo, e povo amontoado no meio das barraquinhas, muita cerveja, cigarro, gente!

De repente, nos vimos encurralados por gente de todos os lados. A turba não ia para a frente e nem para trás, sendo que pelos lados havia ambulantes, fogareiros, churrasqueiras, enfim, maneiras fáceis de se tropeçar, cair, machucar. Como se não bastasse, as pessoas que vinham de trás e viam os da frente parados, empurrava com a força do corpo, sem se importarem se havia idosos e crianças, gestantes, deficientes físicos.

Subitamente, quando abria um espacinho, vinha um “trenzinho” formado por amigos e familiares, forçando a passagem, e arrastando tudo e todos que se colocassem em seu caminho.

Numa dessas, meu filho foi ferido por uma mulher ostensivamente, que viu tratar-se de um menino, e assim mesmo o empurrou, fazendo com que se desequilibrasse e batesse o bracinho num ferro da armação de uma das barraquinhas. Pior, foi lançado ao encontro de uma churrasqueira e, caso não o estivesse segurando bem forte, teria caído por sobre as brasas.

Foi o que bastou para o menino entrar em pânico, ter um descontrole emocional e abrir um berreiro. Berreiro abafado pela multidão, que continuava empurrando e passando o rolo compressor.

O meu filho me olhava em desespero, chorando, pedindo para ir embora, e eu sem poder fazer muito, pois não havia como voltar, e estava difícil sair.

Fui pedindo licença, alegando que o menino não estava passando bem, para tentar abrir caminho e sair da multidão. Mas foi muito difícil convencer pessoas alcoolizadas, indiferentes, interessadas apenas em sua própria diversão, que estava conduzindo uma criança que passava mal. Vi senhoras idosas disputando espaço com o meu filho, agarrando seu bracinho com unhas pontiagudas, para tentar ultrapassá-lo. Vi homens ridicularizando o menino, por suas lágrimas de terror, como se eles mesmos já não tivessem chorado numa situação de aflição. E finalmente vi moças de bom coração, que notaram a agonia da criança, e tentaram abrir espaço para que ele pudesse respirar um pouquinho.

Finalmente chegamos de volta à calçada do metrô, com o coraçãozinho do pequeno disparado, o rostinho molhado, lívido. Bebeu um refrigerante e me abraçou, como que grato por eu estar ali, por ampará-lo.

Voltamos contentes para casa, ele recostado no meu colo, eu acariciando seus cabelinhos, e ambos atônitos com o comportamento humano, naquilo que deveria ser uma agradável brincadeira, como nos anos anteriores, e que se transformara numa torpe demonstração de falta de educação, de elegância e de total falta de solidariedade, de sentimento de proteção, de cuidado com os mais frágeis.

Aproveitamos uma data onde tudo deveria fluir com alegria, e transformamos numa guerra, numa disputa de quem bebe mais, quem grita mais, quem faz mais grosserias.

Vi senhoras que no dia-a-dia condenam a educação das crianças de hoje, mas que foram capazes de maltratar uma criança indefesa no meio da folia.

Vi homens brigões, valentões, corajosos, mas que agrediam covardemente um menino, que eles deveriam proteger, para ensinar-lhe que um homem não se faz com brigas e agressões, mas com delicadeza, gentileza e defesa dos mais fracos.

Vi moças que são habitualmente condenadas por suas vestes, seus hábitos e suas profissões, que se apiedaram do medo do meu filho, e se arvoraram de mães, de anjos do bem e, do meio de suas vidas já tão sofridas, emprestaram um pouco de luz ao menino, que bem poderia, naquele momento, se chamar Jesus.

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