Je non parle nor speak
No ocaso do entardecer crepuscular desta segunda-feira (eu sempre quis começar um texto com esta frase que li num conto satírico de Allan Poe), como eu ia dizendo, no ocaso do entardecer crepuscular desta segunda-feira fiz exatamente aquilo que faço todas as segundas-feiras: fui pro boteco.
Primeiro fui bater o ponto no Famoso Bar do Justo, fim de tarde muito agradável, o Kazu (um amigo japonês) me ensinou a fabricar Coquetéis Molotoff e o Afonso (ele mesmo, o Palhaço-Chefe) me ensinou a temperar feijão.
Depois desta preliminar fui para a saideira lá no bar do Feinho, também conhecido como Zé do Boné, cujo nome oficial é "O Esfihão" (aquele que vende qualquer coisa menos esfihas).
Quando eu já estava quase na saideira de verdade, entrou no bar um senhor bem vestido e de ótima aparência, o que é totalmente incompatível com o jaez dos freqüentadores habituais do Feinho. Ele se aproximou de um balconista e disse algo como "bir rau mãtchi". Depois tentou com outro balconista, depois com o dono do bar e finalmente chegou a mim: "vu parlê francê? Ispiqui inglich?" Eu disse que a cerveja custava três paus e que se ele falasse o "inglichi" bem "islowlizinho" talvez pudéssemos nos entender.
Ele disse que se chamava Michel (novidade, todos os franceses que eu conheço se chamam Michel ou Jean, com exceção de um que se chama Jean-Michel). Morador de Paris, jornalista e produtor de vídeos. Estava fazendo uma série de reportagens pela América do Sul, já tinha passado pelo Chile, Venezuela, Peru e Bolívia.
Depois me perguntou o que eu achava do Lula.
Eu disse que me chamava Luís, músico, natural daqui mesmo, e que já tinha ouvido La Vie en Rose com a Edith Piaff, que por coincidência Edith também é o nome da minha esposa (estratégia que eu uso para afastar a possibilidade de uma cantada homossexual quando não conheço o interlocutor, sua língua e suas intenções). Disse também que adorava as histórias do Asterix e que o Lula era um tipo de Lech Walesa. Depois perguntei por que ele estava num boteco escroto do Carandiru e não no Hilton ou no Renascense.
Enchi um copo de cerveja pra ele, acendi um cigarro e lhe ofereci um, perguntando se fumava.
Ele fez um "ah, eu fumo sim" e tirou do bolso do paletó uma metade de charuto, uma coisa que eu nunca tinha visto, eu juro, vocês podem não acreditar, mas eu juro que aquilo tinha a grossura de um copo americano. Gastei quase todo o gás do meu isqueiro acendendo aquela bitela. O bar inteiro ficou olhando pra gente. "Eu trouxe da Bolívia", ele disse, "a outra metade eu fumei lá mesmo". "Como vocês chamam isto aqui?", ele perguntou e eu respondi que era charuto, mas daquele tamanho eu nunca tinha visto.
Então ele disse que estava surpreso por conhecer um músico brasileiro, falou que lá na França ouviu tal de Sérgio tocando piano e cantando "ô,ô,ô,ô,ô, aria raiou, obá, obá, obá..." Cantarolou também um pedacinho de Águas de Março em francês e falou de Vinícius de Moraes e João Gilberto. Perguntou que instrumento eu tocava e quanto ganhava por show.
Eu disse que aquele Sérgio que ele ouviu provavelmente era o maestro brasileiro Sérgio Mendes e aquela música do "obá, obá, obá" era do Jorge Ben. Aí eu resolvi dar uma de gostoso, de que ganhava muito bem e menti descaradamente dizendo que recebia pelo menos oitocentos por show.
Ele disse: "Só!? Pois lá na Europa você ia ganhar no mínimo quinze mil", sem especificar se os "fífitim táusandi" eram em Reais, Dólares ou Euros. Depois tirou do outro bolso um mapinha do metrô de São Paulo e perguntou onde ele poderia comprar jornais e revistas em francês e onde havia casas de câmbio.
Eu apontei pra estação República, disse que na Av. Ipiranga e na São Luís tem muitas casas de câmbio e bancas que vendem jornais de outros países. Ele perguntou se era perigoso andar por lá à noite e eu disse "não, já foi pior, hoje está tranqüilo."
Bem, depois engatamos um papo sobre mulheres que, por respeito aos leitores, não vou reproduzir aqui.
Por fim, ele disse que era poeta, pegou um papel de pão e escreveu em inglês os versos abaixo, que transcrevo agora exatamente da maneira como estão no papel:
"Life is as woman
Never knows when she is
On you way you get her
And pass over for you
She leave you soon you love her.
Be sur you get some money
She takes back her love
As soon you leave your heart
Somedays you forget her.
Life is sur for you
anyways you beleave as boy
But love is the best assurance
That you are allway in life."
(10/9/07 - Michel Fargeon)
Moral da história: Papo de bêbado é sempre papo de bêbado, em qualquer lugar e em qualquer língua.