EU QUERO SER SANTO
Vulpino Argento, o demente, tinha cada idéia! Dessa vez, resolveu ser santo; e um santo católico. Essa pretensão legítima, acreditava, baseava-se no seguinte raciocínio (Vulpino Argento raciocinava): “Se a Igreja Católica Apostólica Romana fez tanta gente virar santo só porque eram humildes, serviçais, mártires, assistencialistas, fanáticos; e capazes de atender pedidos de curas pra tudo, e de dar soluções para os problemas dos suplicantes, então por que não posso eu mesmo, ser um santo e fazer muitos milagres?”
Demente que era, Vúlpi – trato o demente com esta intimidade carinhosa porque o conheço muito bem e sei do que é capaz quando tratado com grosseria - cheirava maldade em estado bruto há muitos quilômetros distantes.
“Santidade é uma dádiva divina para todos os homens; – argumentava acreditando saber o que dizia – portanto tenho todo o direito de também receber essa dádiva de Deus e fazer milagres!”
“Os Evangelhos, Vúlpi, e muitos outros livros sagrados como os Vedas, por exemplo, os escritos mais antigos do hinduísmo, elaborados por vários séculos e completados por volta de 900 a.C, ensinam que santidade e milagre são coisas completamente diferentes. Santidade se for dádiva divina para todos os homens, como você diz, então é prática da natureza humana; milagre, não! Milagre é um sinal da presença de Deus alterando subitamente e de maneira totalmente insólita qualquer determinismo natural. Sem explicação.
Além disso, Vúlpi, só podem ser santificados aqueles que já passaram por esta vida. Só os mortos são santificados pela Igreja Católica pelo que fizeram quando estavam vivos! - exclamei e continuei: “E pelo que se pode notar você ainda está cheio de carnes e de gorduras entupindo suas artérias; e com a pressão arterial acima das nuvens; e com o sangue mais doce do que doce de batata doce e, ainda assim, vivo.”
.”Mas os santos existem, mestre. E parece que são muitos mas não são. São é poucos pra atender tanta gente pedindo ajuda. É preciso mais santos, mestre!”
“Vúlpi, eu não me importo com crenças, sejam elas quais forem e venham de onde vierem. Não acredito em santos; esses fabricados pela Igreja Católica Apostólica Romana, herdeira de muitos dos aparatos pagãos do Império Romano pré-cristão, adotados desde os primeiros séculos de sua existência.”
“Que aparatos, mestre?” - pergunta Vúlpi sabendo que odeio ser chamado assim, de mestre.
“Entre eles - respondi logo, pois me pareceu estar interessado - estão as vestes dos sacerdotes, o uso do incenso e da água benta nas purificações, os círios e a luz perpetuamente acesa nos altares, a veneração aos mortos, a arquitetura das basílicas, a lei romana como base para a lei canônica, o título de Pontifex Maximus para o Supremo Pontífice, e, finalmente, a partir do quarto século, a adoção do latim como língua oficial da Igreja.
Assim, caríssimo Vúlpi, os bispos passaram a ser o poder e a lei nas cidades, ocupando o lugar dos prefeitos romanos; os arcebispos suplantaram os governadores de província, sendo que, por óbvia conseqüência, o Sínodo dos Bispos tomou o lugar da Assembléia Provincial. Seguindo as pegadas do Estado Romano, a Igreja Católica, como se vê, não se limitou a tomar as formas e os costumes religiosos da Roma pagã, foi muito além da queda do Império e chegou até nossos dias, espalhando poder, pompa e circunstância por todo esse lado de cá do Planeta. Esses primeiros cristãos apóstatas do segundo século, ao lançarem mão de todos os ornatos da religião romana pagã, desviaram-se de sua origem bíblica pura e hebraica, refestelando-se com títulos, adotando parâmetros romanos pagãos e embevecendo-se com a filosofia grega. Eles admiravam tanto a sabedoria dos gregos, que começaram a ver similaridades entre a filosofia grega e os ensinamentos das Sagradas Escrituras. A filosofia e a terminologia grega foram se infiltrando tanto nos ensinamentos da cristandade e de tal maneira que eles passaram a acreditar na existência de uma alma imortal. Contrariavam assim a Cristo que, como judeu que era, acreditava na ressurreição da carne e não na platônica imortalidade da alma. “A imortalidade da alma é um dogma filosófico pagão” – nos ensina Unamuno.
Sendo, então, a alma imortal, Vúlpi, para onde é que ela iria depois da nossa morte? Era necessário, portanto, encontrar um lugar para ela. Pois eles acabaram encontrando vários: céu, inferno, purgatório, limbo, paraíso...E note que expressões como “alma imortal”, “fogo do inferno”, “purgatório” e “limbo” não se acham em nenhuma parte da Bíblia hebraica. Sabes?
Por isso, e por muito mais do que só isso, Vulpino Argento, é
que não me bate a passarinha a santos, sejam eles quais forem. E um pouco mais: Cristo disse que somente se chega ao Pai por intermédio dele, e Ele, o Pai, disse, por intermédio de Moisés, que é proibido construir imagens e estátuas de quem quer que seja, para adoração, veneração, devoção ou outra bobagem qualquer; sem usar este termo grosseiro, evidentemente. Portanto, Vulpino Argento, vá arranjar outra coisa pra fazer, levando sua demência para tomar sol. E com a devida licença do frei carmelita Cláudio van Balen, faço dele as minhas palavras, com a audácia dos que pouco sabem, a não ser onde canta o galo: “Tais pessoas (os santos) têm seu valor. Nem todo mundo precisa ser igual. Porém, nem eles (os santos) nem o povo fiel (os mortais comuns) precisam dessa privilegiada honra dos altares. Exigir que do Céu alguém realize um milagre neste mundo é, no mínimo, falta de bom senso e,no máximo, é usar o nome de Deus em vão. É como se a Igreja fosse um espaço onde se pode negociar com os que estão do outro lado.
Deus habita nosso íntimo e seu poder nos basta. E supondo ainda que um santo tenha feito um bom serviço, quem, neste mundo, poderá discernir se foi fulano ou sicrano? Tal poder, imagino eu, Deus não cede a ninguém.”
Vulpino Argento, o demente, deu de ombros, como se dizia nos tempos do meu avô. Olhou-me com desprezo e depois saiu bem devagarzinho.