Nosso Dom
Tem gente que tem o dom da voz; gente que têm o dom da palavra; gente abençoada com o dom da pintura. Tem gente por aí com o dom do perdão – gente pouca, essa gente! -, aqueles com o dom da paciência, da sabedoria e outras coisas mais. Tem dom pra tudo que é gente, pode acreditar!
Do latim, “donu” – na gramática portuguesa, nosso “dom” é o substantivo que expressa nossos dotes naturais, a dádiva particular que sobressai de cada natureza humana. Somos da mesma espécie, diferentes entre si, mas de uma espécie comum, portanto, temos sim - todos nós - um dom.
O que nos falta não é aptidão, mas dedicação e afinco para desenvolver nosso talento. O que seriam das telas de Portinari sem as horas despendidas ao conhecimento da história da arte? Será que Os Lusíadas, de Camões, nasceram facilmente de uma tarde de chuva? Os poemas de Vinícius, então... Todos os grandes nomes da história carregam, por detrás de suas pompas e condecorações, uma vida inteira de dedicação e sacrifício em nome de seus dons.
O ator tem o dom da interpretação, convencendo facilmente a platéia de que é um rei neste instante, um mendigo no próximo ato. O escritor, igualmente, consegue convencer de seus sentimentos, narrativas e opiniões pelo dom da palavra. O músico, da mesma forma, faz os ouvidos mergulharem no sentimentalismo de cada nota musical.
Maria não pinta, não canta e não escreve; não sabe cozinhar e tem uma dificuldade enorme em matemática. Foi casada durante dez anos. Separou quando descobriu sua vontade de ser mãe – o marido, no entanto, nunca quis ser pai. Trabalhava há sete como pesquisadora do Instituto Nacional de Biologia Marinha, mas essa semana pediu demissão. O próximo projeto, na qual fora nomeada como responsável, exigia sua permanência – durante seis meses – num arquipélago controlado pela Marinha, na costa brasileira.
Há um ano Maria foi ao médico e descobrira que não podia ter filhos. Quando podia e tinha marido, não quis. Agora que queria, não mais podia – nem marido tinha mais. Resolvera inscrever-se como interessada para adoção de menores, e esperou quatro meses a ligação da assistente social. Júlia tinha dois meses, os olhos espertos e pezinhos pequenos escondidos nos sapatos brancos de lã. Maria acabara de ser mãe – era o que diziam os olhos da menina.
Quando Júlia completou dois anos, Maria recebeu promoção no emprego. O salário dobraria, e isso certamente facilitaria a comodidade que tanto se preocupava em conceder à filha. Essa semana, seu supervisor notificou-lhe da viagem que teria que fazer à costa brasileira. Maria ligou para a mãe, com o coração apertado, querendo muito mais que um conselho – na verdade, um colo de mãe. Acertaram que a avó poderia ficar na casa cuidando de Júlia durante os seis meses, para pouco atrapalhar a rotina da menina. Maria, quando chegou em casa, encontrou a filha colorindo um papel. No desenho, três meninas de mãos-dadas. “Somos nós três mamãe! Só nós três.” No dia seguinte, Maria pediu demissão.
Nosso dom se expressa da forma que nos faz feliz, seja com um quadro, uma música, um prato ou os olhos dos filhos, só precisamos nos dedicar.