O Furto
Não vou me resignar: houve um furto. E ainda que alguns entendam tal subtração como algo positivo - até mesmo desejável -, não tenho outro nome para lhe dar.
Como é comum, o ladrão, ao fazer sua defesa, procurou se livrar da acusação, chamando o furto de progresso - e o pior é que houve quem acreditasse! Mas o que ocorreu efetivamente foi uma lesão ao patrimônio.
O caso é que eu estava indo ao Rio e, como moro em Niterói, dirigi-me à estação das barcas. Para minha surpresa, quando lá cheguei, vi um painel luminoso, no qual se informava que a duração da viagem era de 12 minutos. Achei que houvesse algum erro, porque a travessia sempre durou 20 minutos; pelo menos, desde que me lembro.
Depois de uns vinte minutos - é isso mesmo: o tempo da espera é maior que o da travessia! -, o portão da zona de embarque se abriu, e os passageiros, com a pressa habitual, dirigiram-se à embarcação. Esperei que os mais ansiosos passassem, como costumo fazer, e fui andando em direção à rampa de embarque. Porém não era a barca – a boa e velha barca – que estava lá, mas uma embarcação retilínea, simétrica e com duas faces idênticas – duas proas –, sem popa. Não perguntei nada; entrei e me sentei à janela, que, para minha tristeza era bem menor que a das antigas barcas.
Convenci-me de que havia sido furtado. E a lesão atingiu no mínimo dois bens de uma só vez: a duração da viagem, que foi reduzida de 20 minutos para míseros 12, e a vista da janela, que antes era maior e melhor posicionada.
O ladrão, contudo, apresentou o crime como benefício, dizendo que a nova barca era mais rápida e eficiente. Mas o fato é que não consigo mais ver o brilho do sol refletido na água, pois a janela nova, além de pequena, foi colocada nas alturas. Também fui privado do som das janelas, que trepidavam. E as cadeiras de madeira? E os minutos que eu tinha a mais? E os balcões que permitiam viajar ao ar livre?
Tenho certeza de que perdi oito minutos - dezesseis por dia, na verdade, já que sempre vou e volto -, apesar de dizerem que ganhei os tais 8 minutos. Se eu quisesse oito minutos bastava chegar mais cedo à estação. Por que não subtraíram esses dezesseis minutos da minha jornada de trabalho? Ou da viagem de ônibus? Não, os retiraram da melhor parte da viagem.
E como tenho o costume ler na barca, estes 16 minutos fazem muita diferença, principalmente nos dias de prova na faculdade; mal abro o livro e a barca já está chegando. Quando o livro é um bom romance, então, se torna ainda mais difícil desembarcar: semana passada, voltando do trabalho, absorto numa boa história, quase retornei ao Rio, em vez de desembarcar em Niterói.
A velha barca, que prefere o caminho ao fim, possui frente e verso, e, por isso, tem que dar um giro para virar sua proa para o destino. A nova tem duas proas e já abandona o cais apontando para o terminal. Perdi esta preciosa volta e, ao perdê-la, fui privado também do cálculo sobre o lado sol.
Explico: antes, quando embarcava, refletia sobre onde incidiria o sol durante o trajeto. No inverno, sentava-me no lado da sombra ao entrar, porque, depois de a lancha girar, tornava-se este o lado do sol. No verão, fazia o oposto, para ficar do lado da sombra. De dezembro a março, esquecer-se de pensar sobre este pequeno detalhe implicava chegar ao destino suado e irritado. Agora, infelizmente, já não penso em mais nada disso: o sol vai do início ao fim do mesmo lado, monótono e previsível.
Mas o pior foi a redução e elevação das janelas. Aposto que os engenheiros que projetaram as novas barcas moram no Rio e nunca vêm a Niterói; e mesmo que venham, devem preferir a ponte. As nova janelas não permitem que se olhe o mar, parecem grades de tão pequenas; são semelhantes a janelas de ônibus, mas ainda piores, na medida em que são colocadas no alto, fora do alcance da visão. Para ver o sol refletido no mar é preciso ficar de pé. Onde já se viu viajar pelo mar e não vê-lo?
E quanto aos balcões? A barca antiga possui dois balcões, um na popa e outro na proa. Havia até uma lancha mais velha, que tinha um alpendre na popa, o qual possuía bancos parecidos com os de praça mas com encostos móveis, permitindo que se escolhesse para que lado olhar durante a travessia; sem falar noutro modelo, que tinha, além dos balcões, varandas laterais com bancos - sem dúvida o melhor, na medida em que nos permitia viajar confortavelmente ao ar livre.
E para completar, não se pode deixar de falar doutra triste conseqüência do crime: a troca da saudação calorosa do comandante, feita ao vivo - ainda que algumas vezes (não poucas!) não entendêssemos nada do que falava -, pela gravação de uma metálica e fria voz, que repete insípidas advertências. Extinguiu-se a espontaneidade. Antes, o comandante podia nos desejar boa viagem, advertir sobre os perigos do mar, elogiar o céu, nos dar uma bronca, chorar etc. (embora geralmente se limitasse a nos desejar boa viagem). Agora, só nos resta a gravação, sempre impessoal, monótona, vazia.
A "evolução" da barca foi acabando com as suas qualidades: a cada novidade a barca perde seu ar de passeio para se restringir somente a um meio de transporte. E ainda chamam isto de progresso! Não sou um saudosista inveterado nem um casmurro fechado às novidades: meu apego não é ao passado mas ao que é melhor. Se a nova barca tivesse grandes janelas e balcões, talvez eu até suportasse as duas proas e o furto de 16 minutos.
No entanto, o ladrão, apesar de sua crueldade, não levou tudo: durante os fins-de-semana são as barcas antigas que singram a baía de Guanabara, agradavelmente lentas e cheias de poesia. Convido, pois, os engenheiros navais - autores intelectuais do furto - a viajarem, pelo menos uma vez, num domingo de sol, na vetusta e bela barca. Se eles tiverem coração, projetarão, da próxima vez, uma barca menos moderna e mais amiga da vida. Obcecados com a rapidez, os criadores da nova embarcação esqueceram-se – se é que algum dia souberam - de uma das maiores verdades: viajar de barca é como viver: o fim não é mais importante que o caminho a ser percorrido. E no que se transforma o caminho, se reduzem o seu tempo de duração, nos tiram as janelas e os balcões nos quais desfrutávamos a paisagem?
Como é comum, o ladrão, ao fazer sua defesa, procurou se livrar da acusação, chamando o furto de progresso - e o pior é que houve quem acreditasse! Mas o que ocorreu efetivamente foi uma lesão ao patrimônio.
O caso é que eu estava indo ao Rio e, como moro em Niterói, dirigi-me à estação das barcas. Para minha surpresa, quando lá cheguei, vi um painel luminoso, no qual se informava que a duração da viagem era de 12 minutos. Achei que houvesse algum erro, porque a travessia sempre durou 20 minutos; pelo menos, desde que me lembro.
Depois de uns vinte minutos - é isso mesmo: o tempo da espera é maior que o da travessia! -, o portão da zona de embarque se abriu, e os passageiros, com a pressa habitual, dirigiram-se à embarcação. Esperei que os mais ansiosos passassem, como costumo fazer, e fui andando em direção à rampa de embarque. Porém não era a barca – a boa e velha barca – que estava lá, mas uma embarcação retilínea, simétrica e com duas faces idênticas – duas proas –, sem popa. Não perguntei nada; entrei e me sentei à janela, que, para minha tristeza era bem menor que a das antigas barcas.
Convenci-me de que havia sido furtado. E a lesão atingiu no mínimo dois bens de uma só vez: a duração da viagem, que foi reduzida de 20 minutos para míseros 12, e a vista da janela, que antes era maior e melhor posicionada.
O ladrão, contudo, apresentou o crime como benefício, dizendo que a nova barca era mais rápida e eficiente. Mas o fato é que não consigo mais ver o brilho do sol refletido na água, pois a janela nova, além de pequena, foi colocada nas alturas. Também fui privado do som das janelas, que trepidavam. E as cadeiras de madeira? E os minutos que eu tinha a mais? E os balcões que permitiam viajar ao ar livre?
Tenho certeza de que perdi oito minutos - dezesseis por dia, na verdade, já que sempre vou e volto -, apesar de dizerem que ganhei os tais 8 minutos. Se eu quisesse oito minutos bastava chegar mais cedo à estação. Por que não subtraíram esses dezesseis minutos da minha jornada de trabalho? Ou da viagem de ônibus? Não, os retiraram da melhor parte da viagem.
E como tenho o costume ler na barca, estes 16 minutos fazem muita diferença, principalmente nos dias de prova na faculdade; mal abro o livro e a barca já está chegando. Quando o livro é um bom romance, então, se torna ainda mais difícil desembarcar: semana passada, voltando do trabalho, absorto numa boa história, quase retornei ao Rio, em vez de desembarcar em Niterói.
A velha barca, que prefere o caminho ao fim, possui frente e verso, e, por isso, tem que dar um giro para virar sua proa para o destino. A nova tem duas proas e já abandona o cais apontando para o terminal. Perdi esta preciosa volta e, ao perdê-la, fui privado também do cálculo sobre o lado sol.
Explico: antes, quando embarcava, refletia sobre onde incidiria o sol durante o trajeto. No inverno, sentava-me no lado da sombra ao entrar, porque, depois de a lancha girar, tornava-se este o lado do sol. No verão, fazia o oposto, para ficar do lado da sombra. De dezembro a março, esquecer-se de pensar sobre este pequeno detalhe implicava chegar ao destino suado e irritado. Agora, infelizmente, já não penso em mais nada disso: o sol vai do início ao fim do mesmo lado, monótono e previsível.
Mas o pior foi a redução e elevação das janelas. Aposto que os engenheiros que projetaram as novas barcas moram no Rio e nunca vêm a Niterói; e mesmo que venham, devem preferir a ponte. As nova janelas não permitem que se olhe o mar, parecem grades de tão pequenas; são semelhantes a janelas de ônibus, mas ainda piores, na medida em que são colocadas no alto, fora do alcance da visão. Para ver o sol refletido no mar é preciso ficar de pé. Onde já se viu viajar pelo mar e não vê-lo?
E quanto aos balcões? A barca antiga possui dois balcões, um na popa e outro na proa. Havia até uma lancha mais velha, que tinha um alpendre na popa, o qual possuía bancos parecidos com os de praça mas com encostos móveis, permitindo que se escolhesse para que lado olhar durante a travessia; sem falar noutro modelo, que tinha, além dos balcões, varandas laterais com bancos - sem dúvida o melhor, na medida em que nos permitia viajar confortavelmente ao ar livre.
E para completar, não se pode deixar de falar doutra triste conseqüência do crime: a troca da saudação calorosa do comandante, feita ao vivo - ainda que algumas vezes (não poucas!) não entendêssemos nada do que falava -, pela gravação de uma metálica e fria voz, que repete insípidas advertências. Extinguiu-se a espontaneidade. Antes, o comandante podia nos desejar boa viagem, advertir sobre os perigos do mar, elogiar o céu, nos dar uma bronca, chorar etc. (embora geralmente se limitasse a nos desejar boa viagem). Agora, só nos resta a gravação, sempre impessoal, monótona, vazia.
A "evolução" da barca foi acabando com as suas qualidades: a cada novidade a barca perde seu ar de passeio para se restringir somente a um meio de transporte. E ainda chamam isto de progresso! Não sou um saudosista inveterado nem um casmurro fechado às novidades: meu apego não é ao passado mas ao que é melhor. Se a nova barca tivesse grandes janelas e balcões, talvez eu até suportasse as duas proas e o furto de 16 minutos.
No entanto, o ladrão, apesar de sua crueldade, não levou tudo: durante os fins-de-semana são as barcas antigas que singram a baía de Guanabara, agradavelmente lentas e cheias de poesia. Convido, pois, os engenheiros navais - autores intelectuais do furto - a viajarem, pelo menos uma vez, num domingo de sol, na vetusta e bela barca. Se eles tiverem coração, projetarão, da próxima vez, uma barca menos moderna e mais amiga da vida. Obcecados com a rapidez, os criadores da nova embarcação esqueceram-se – se é que algum dia souberam - de uma das maiores verdades: viajar de barca é como viver: o fim não é mais importante que o caminho a ser percorrido. E no que se transforma o caminho, se reduzem o seu tempo de duração, nos tiram as janelas e os balcões nos quais desfrutávamos a paisagem?