Memórias Trapísticas II
Ou "anauê, anauê, anauá"
(Aos meus amigos da banda Língua de Trapo - SP)
A gente gostava de sentir medo. Era divertido.
Ficávamos imaginando o que acontecia no interior da enorme casa. Pusemos um nome na casa, era a “mansão dos carecas”.
Para ficar observando a mansão, a gente ficava escondido entre as folhagens de um “chorão” na esquina. Bem, até aquele dia pensávamos que estávamos bem escondidos.
Na verdade aquela casa era uma das sedes da TFP. Sabíamos que aqueles jovens enclausurados sofriam torturas psicológicas horríveis e comiam cérebro de criancinhas.
- Mas o que é TRP? – perguntei pro meu amigo.
- Não é TRP, imbecil, é TFP.
- Então por que o cara da música canta TRP?
- Porque senão eles matam ele.
- Ah, bom.
Tínhamos dois pacotes de bolachas recheadas São Luiz e quatro caixinhas de achocolatado Longuinho Paulista para passar a noite ali observando a mansão e sentindo medo.
As janelas dos claustros tinham uma luz fraca e amarelada. Quando um dos carecas passava e seu vulto aparecia, a gente se enfiava mais pelas folhagens e ficava esperando para ver algo muito assombroso. Tínhamos certeza de que numa noite dessas veríamos um vulto pegando um bebê e mordendo-lhe a cabeça na moleira e arrancando e mastigando o cérebro.
- Que horas são? – Perguntei pro meu amigo.
- Meia-noite e vinte.
- Vamos embora?
- Deixa de ser cagão, vamos ficar mais.
De repente a porta se abriu, um careca de manto preto e vermelho saiu pelo jardim, passou pela estátua da santa que segura um bebê e chegou perto do portão principal.
Tremíamos, tentamos nos esconder melhor, eu estava quase cagando nas calças de medo.
O careca deu a impressão de que ia voltar e entrar na casa mas, numa manobra muito rápida, abriu o portão e começou a correr em nossa direção soltando labaredas pelos olhos.
Saímos numa corrida tão desesperada que nem nos importamos de derrubar as bolachas e o achocolatado pelo chão. Corremos sem olhar para trás até chegarmos à casa do meu amigo.
Fui direto pro banheiro. Tinha cagado.