Licao de cigarra
Quando eramos meninos, aguardavamos, ansiosos, a chegada da primavera e, junto com ela, a algazarra das cigarras.
Quiquiquiquiiiiiiii...., faziam, ensurdecedoramente, as cigarras pelas copas e troncos das arvores. Dia inteiro, ate boquinha da noite, elas insistiam naquela zoeira mgistral. Uma de nossas diversoes prediletas era caca-las pelos troncos das arvores. Quando percebiam nossa aproximacao, elas imediatamente paravam de cantar e ficavam imoveis ascultando nossas intencoes. Simultaneamente, paralisavamos a acao. Muitas delas realizavam um movimento receoso, contrario a nossa chegada. Ladeavam lentamente o tronco, buscando a protecao do lado oposto. Nesse momento era necessario que fossemos bastantes argutos, pois, nao raramente, isso antecedia o voo da fuga. O voo salvador. Disfarcavamos o gesto e a intencao. Quando ela se punha novamente a cantar, retomavamos a ardilosa perseguicao. Sorrateiramente, pe ante pe, aproximavamos ate ficarmos a uma pequena distancia. Arqueavamos ligeiramente as pernas, dobravamos a mao num formato de concha e num movimento elastico, rapidissimo, lancavamos aquele caracl pele, musculos e ossos em sua direcao. Num piscar de olhos, a cigarra se via presa naquela estranha armadilha de palma e dedo. Batia as asas desesperadamente na tentativa de se soltar. Tarde demais. Tornara-se prisoneira de nosso sadismo infantil. Na inocencia tipica de menino, comecavamos a lhe impor doloroso castigo. Aproximavamo-a de nossos ouvidos e chacoalhavamos a mao para que se sentisse incomodada e comecasse a cantar. Era o nosso paraiso e certamente o inferno da cigarra. Interrompido o canto, nova chacoalhada. Questionavel deleite, hoje reconheco. Porem aquele quiquiquiquiiiiiii era uma doce melodia soprada aos nossos ouvidos. Um membro daquela orquesta executava, ainda que, a contragosto um solo para um de seus admiradores. Nao conhceciamos Mozart, Beethoven, Bach, sequer sabiamos o que era uma sinfonia. Ignoravamos o pentagrama , partitura, do, re, mi, fa, sol, la, si, simetricamente medidos, organizados, justapostos, divididos em compassos.
Nunca haviamos ouvido falar em dissonantes, bemois, sustenidos, teoremas musicais, teorias da linguagem musical.
Nossa musica era uma oferta, uma dadiva, um grande presente doado generosamente por aquelas cantoras incansaveis e insaciaveis de vida e sol.
Na cantoria das tardes, muitas vezes, parecendo regidas por algum maestro invisivel, faziam uma pausa longa demais. Ficavamos inquietos.
Tentavamos em vao imita-las. Aquele quiquiquiiiiii....rouco, belo, era inigualavel. Mesmo assim abriamos o peito, na intencao de que elas ouvissem aquele falso canto e recomecasse a cantoria.
CANTAR ERA BUSCAR O CAMINHO QUE VAI DAR NO SOL
TENHO COMIGO AS LEMBRANCAS DO QUE EU ERA...
(Milton Nascimento)
Dancavamos embalados por aquele canto estridente e divino. A zoeira nas tardes quentes de primavera parecia nao ter fim. Corpo verde, asas cristalinas, olhos grandes localizados quase a frente da cabeca.
Cigarras grandes, medias, pequenas. Esparramadas aleatoriamente nos troncos dos cajueiros, da goiabeira, da amoreira, da mangueira, do coqueiro, no pe da laranjeira, em todas as plantas do quintal. Cigarras loucas, que mesmo tendo asas, as vezes, voavam contra a vontade no bico de algum faminto pardal.
Cigarras que alegravam nossos dias, que enchiam de canto as nossas tardes. Condenadas a morrer de tanto cantar. Belo e tragico ao mesmo tempo. Destino copiado das paginas de Shakespeare. Nosso primeiro contato com uma morte diferente. Os outros animais agonizavam ao morrer, a cigarra estranhamente cantava.
Grudadas no tronco, casquinhas amarelas, transparentes, resssequidas, frageis, que se esmigalhavam ao pegar.
Nada de ataude, velorio, flores, cova, lapide, velas, lagrimas, missa.
Nada de nada. Somente o vento e o canto alegre e indiferente das outras cigarras.
Morrer cantando!!! E (penso fumando meu cachimbo), nao deixa de ser uma boa ideia!