Aqueles dois
Ele estava andando pelo shopping quando se deparou com uma criatura muito cheia de trejeitos felizes. Ela vinha saltitando, balançando a cabeça de um lado para o outro, meio que dançando também, e sorria… Ela nem prestou atenção nele e nem percebeu que desde a entrada do shopping, ele a seguia com os olhos.
Ele quase morreu de pavor quando viu que ela tinha um mp3 player e estava lá.. com seus fones de ouvido, cabelos esvoaçantes e boca exageradamente em movimento, cantando com o “mute” acionado, enquanto caminhava em sua direção.
Ele entrou em pânico, estava prestes a se armar em posição de luta, se não fosse o pavor e a sua involuntária rendição aquela cena de comercial de margarina.
Ela de cinco queijos. Ele de calabresa com muita cebola. Os dois de pizza fria com café.
Ela de Woody Allen. Ele de David Lynch. Os dois exatamente de William Wallace gritando FREEEEDOOOOOWWWWW.
Ela de Amelie Poulain. Ele de Star Wars. Os dois de “any of you fuckin pricks move, I’ll execute every motherfuckin last one of .. ya!” em Pulp Fiction.
Ela de cinema. Ele de tevê a cabo. Os dois de finais de semana na maratona cartoon.
Ela de Gabriel García Márquez. Ele de Dostoievski. Os dois com aversão a Paulo Coelho.
Ela de Álvaro de Campos. Ele de Alberto Caeiro. Os dois apaixonados por Fernando Pessoa.
Ela de qualquer coisa com legendas e mais de um capítulo. Ele de Seinfeld. Os dois rindo, segurando uma colher e imitando o Joey falando “greeeaa-aaaaat“
Ela de Chico. Ele de Led, os dois de Ferris Buller, cantando Twist and shout, enquanto imitam a mesma dancinha.
Ela “Clocks“, enquanto faz a escova de cabelo de microfone. Ele com cara de mal humorado, enfatizando que detesta Coldplay. Os dois no carro, desafinados, volume ensurdecedor, fazendo dueto em “You give me fever, feeeeverrr“, enquanto ela estala os dedos e ele batuca o volante.
Ela de Regina Spektor. Ele de “Hã?? Regina o que???“
Ela rindo. Ele tentando convencê-la que aquele é o olhar de furioso dele, não o de poodle sem dono.
Ela bêbada, com um copo de gelo nas mãos, já meio rouca e cantando “1, 2, 3 indiozinhos.. 4, 5, 6 indiozinhos 7, 8, 9, 10 indiozinhos iam navegando pelo rioooo-oooo”. Ele gargalhando, pedindo mais uma caipirinha e dizendo que vai denunciá-la para a FUNAI por maus tratos aos índios e para o MEC pelo péssimo emprego da música em questão.
Ela 20 e poucos anos de orgulho e inconveniência. Ele desde 1979 magoando pessoas com palavras ásperas e mal medidas. Os dois desde vidas passadas, só pode!