Kabuki Máscaras.

Vivo toda semana o dilema da estar dividido, uma divisão geográfica (viver numa cidade e trabalhar em outra) que me remete a viver uma vida dupla. Sou um ser ambíguo, mas minha dualidade não me desconforta, ao contrário ela me alivia. Isto porque nunca fui apenas eu mesmo, sou mais, sou muitos. Não! Não estou possuído por entidades ou coisa parecida, trata-se apenas de alguém que nunca se conformou em viver simplesmente a vida como disseram que ela teria de ser. Este comportamento me trouxe alguns problemas, pois necessito ocultar alguns dos meus “eu” dos outros.

Não é difícil ser autêntico neste planeta, difícil é ser tudo o que somos, não sou hipócrita (talvez um pouco!), mas quem pode ser totalmente honesto diante de todos, quem pode ser irremediavelmente verdadeiro em tudo? É possível que possamos e, muitos assim o fazem, seguir a vida com alguma transparência, mas todos nós ocultamos dos outros o que realmente somos. Freud nos deixou uma herança que provocou um cisma na filosofia iluminista, esta, nos seduziu com um sujeito auto-suficiente que pela via da razão iria redimir o mundo da era das trevas, até Freud nos mostrar que o homem não está no controle de si mesmo. As pulsões e as formas de subjetivação do sujeito transformaram o homem em um ser duvidoso.

O homem tornara-se problemático como sugerira o filósofo alemão Max Scheler, ou aprendeu a se compreender melhor ao explorar suas contradições como escreveu o romancista inglês E. M. Foster? O fato é que com o advento da psicanálise o homem, por um lado, deixou de ser senhor de si mesmo, por outro arranjou alguém para culpar por seus erros no lugar do diabo; o inconsciente. Os velhos confessionários, espaço para o homem metafísico falar de suas concupiscências, deram lugar a atual indústria de confissão que são os milhares de consultórios psicológicos e psicanalíticos espalhados por todo o mundo moderno.

O princípio délfico (gnóthi seautón) conhece-te a ti mesmo, postulado por Sócrates como conselho a Alcebíades, sofreu diversas modificações ao longo da história até ser esquecido por completo na sociedade moderna ocidental (Foucault). A mediação tornou-se necessária, afinal como posso conhecer a mim mesmo sem a referência do outro? As relações entre os indivíduos nas sociedades modernas tornaram-se mediadas por um especialista da psykhé humana, o psicoterapeuta.

O kabuki, palavra oriunda da cultura artística japonesa que representa a arte de: “kA – cantar” “Bu – dançar” e “ki – representar”. A arte em forma de teatro foi irreverente e por vezes coibida pela tradição japonesa, por tratar de desmascarar o cotidiano social de uma sociedade que sempre procurou ocultar seus dramas com máscaras felizes e histórias de valentes guerreiros samurais.

Somos seres complexos, ainda inacabados, nos revestimos por uma sucessão de “máscaras”, ou, se alguém ficar ofendido com o termo podemos encontrar um mais sofisticado; “papéis sociais distintos”, isto é, o indivíduo que meus companheiros de trabalho conhecem, não é o mesmo com quem meus filhos convivem, muito menos se trata da mesma pessoa que meus pais viram crescer, no entanto, nenhum destes sou eu, ao mesmo tempo sou todos. Neste sentido, os diários de prostitutas são verdadeiros compêndios de psicologia, neles podemos encontrar revelações que os sujeitos jamais fariam em outro ambiente social, tais revelações certamente seriam levadas para o túmulo sem que a pessoa mais íntima pudesse conhecer as obscuridades do outro.

Porque ocultamos nossos pensamentos mais infames? Por que a sociedade criou um modelo de moral, normatizou os comportamentos socialmente aceitáveis e inaceitáveis, marginalizando todos aqueles que por alguma razão não quiserem viver segundo as normas. Assim os homossexuais, os hermafroditas, os sodomitas, as prostitutas, os loucos, os ignorantes e outros excluídos desta sociedade “perfeita” vivem a espreita, a deriva. Os “normais”, quando acometidos por um pensamento que represente algum comportamento atribuído a um destes excluídos, rapidamente tratam de se auto-repreender, como se o que sentissem fosse repugnante e inaceitável. Depois ao perceber que este pensamento ou prática não os abandonou, procuram ao menos escondê-lo dos outros, afinal nossas fontes de prazer precisam ser preservadas!

J Carval
Enviado por J Carval em 27/08/2008
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