Da importância de se ler Charles Dickens
Ela estava dormindo, tendo seus sonhos sem sentido, quando começou a ouvir “She needs him, yeah… that’s why she’ll be back again.. Can’t find a better man.. Can’t find a better man.. CAN’T FIND A BETTER MAN”. Ela, de olhos fechados, com a cabeça enfiada no travesseiro, tateia ao seu redor, em busca daquele aparelho demoníaco, responsável pelo brusco despertar e, ainda sonolenta, desliga o celular enquanto resmunga: “merda de despertador”. Ela resmunga mais alguma coisa, ajeita o travesseiro e se enrola no edredom. Não se sabe se minutos ou segundos depois, mas o fato é que o celular voltou a tocar insistentemente. Ela abre os olhos, resmunga mais alguma coisa, dessa vez olha o visor, vê números desconhecidos e, ainda meio sonolenta, atende:
- Se você não for um amigo(a) íntimo(a), com muita liberdade para me ligar a essas horas ou um desconhecido portador de alguma informação importantíssima, eu vou amaldiçoá-lo até a quinta geração por me acordar.
- Você está namorando?
- Ãhn?
- Está namorando?
- Não, estou dormindo (diz ela, sem entender muito bem o que está acontecendo).
- Não perguntei nesse momento, não perguntei se interrompi alguma coisa. Perguntei se tem compromisso firmado, em alguma esfera, com algum indivíduo.
- Quem fala?
- Como quem fala? VOCÊ NÃO SABE QUEM ESTÁ FALANDO??
- Não sei nem se eu estou falando ou sonhando. Que horas são? Pode me ligar depois do meio-dia? Não, não.. depois das 14h.. Isso, depois das 14h, decidido!
- Eu estava pensando em você e me perguntando por que a gente terminou e não consegui encontrar a resposta. Você se lembra?
- Não lembro nem que namoramos.
- Eu estava saindo com uma garota e estava fazendo uma analogia envolvendo o David Copperfield e de repente ela fez gestos estranhos de empolgação feminina, enquanto repetia “eu A-DO-RO-OOO aquele mágico, pena que o Fantástico não passa mais aquele quadro com ele”. Assim, com essa ênfase no “adoro” e tudo.
- Não sei se você está bêbado ou se eu estou dormindo, mas era para essa conversa ter sentido?
- Ela começou a falar coisas do mágico, do Fantástico e eu pensei “Meu Deus! Com que tipo de mulher eu ando saindo?”. E enquanto ela falava de mágicas e de modelos norte-americanos, eu comecei a pensar em você e comecei a me perguntar por que diabos terminamos. Não consegui encontrar um motivo, tive que te ligar.
- Definitivamente, não foi por eu não conhecer a obra de Charles Dickens. Posso voltar a dormir agora?
- Lembrou que namoramos?
- Sim, você tem o perfil exato para ser meu namorado. Ligar de madrugada para falar da sua atual e Charles Dickens, é algo que só um excêntrico faria. Sendo você maluco e excêntrico, só pode ter sido e/ou está prestes a se tornar meu namorado.
- Então você também acha que deveríamos voltar?
- Sim, eu deveria voltar a dormir, você deveria voltar a.. a.. hum.. passar para o próximo nome da agenda de ex-namorada?
- Você continua com um humor ácido.
- E você continua com a péssima mania de me ligar de madrugada.
- Por isso terminamos?
- Se bem me lembro, você que terminou comigo. Será que é porque eu fui e continuo sendo ácida?
- Eu terminei com você?
- Sim, foi quando eu descobri o sorvete de chocolate suíço com avelã, assisti compulsivamente “Sociedade dos poetas mortos” e me dediquei aos cd´s de jazz.
- Até parece. Você disse um “tudo bem” e seguiu sua vida como se nada tivesse acontecido.
- Jura que não lembra porque terminamos? Pelo ressentimento por eu não ter tentado o suicídio, parece que você se lembra bem do fim da relação.
- O ressentimento é por você não ter me ligado 28 vezes, num intervalo de 2 horas, para dizer que queria voltar.
- Eu acredito no livre arbítrio e você me disse ter certeza que era aquilo que queria, enfatizando que não ia me procurar e que eu deveria fazer o mesmo.
- Eu queria que tivesse me ligado 28 vezes, aliás, 2 bastariam. A gente merecia um fim melhor, um motivo melhor.
- Então está me ligando para que a gente termine decentemente?
- Não, estou ligando para que a gente namore.
- Namore e depois termine decentemente?
- Não, só namore… O que me diz?
- Digo que, definitivamente, você gosta muito de Charles Dickens