A honra ofendida

A HONRA OFENDIDA

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 27.08.2008)

Se eu publicar algo assim, "O Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra é, hoje, um dos mais notórios torturadores da ditadura militar brasileira", corro o sério risco de ser processado por injúria, calúnia e difamação, podendo ser condenado a pagar expressiva indenização pelos danos irreparáveis que terei causado à sua honra. E se eu não tiver - como não tenho - o dinheiro necessário para, sem cinismo, "honrar" essa pálida reparação do estrago que deliberadamente provoquei, irei preso por um bom tempo, até aprender a não ficar falando mal das pessoas, porque isso, além de ser muito feio, é coisa tal de não restar impune. Deverei dar-me por muito satisfeito quando, preso, não for "interrogado" pelo Coronel, agora na reserva, com os métodos que ele usava e de que abusava durante aquele negro período da vida nacional.

Se, porém, ocorrer a desgraça com que a vida às vezes nos surpreende e o Coronel Brilhante Ustra vier a falecer (sem que, por hipótese, eu tenha qualquer participação no insucesso), minha situação haverá de ser muito pior e bem mais triste. Porque aí haverá de surgir ao menos um neto dele, ou uma sobrinha, ou algum descendente qualquer, que não se conformará com o impacto que as minhas irresponsáveis palavras terão causado em sua vida pelo abalo emocional indescritível que terá sofrido ao ler coisa tão ultrajante sobre o seu amado e carinhoso ancestral - sujeito que, morto, já não mais poderá defender-se por si mesmo, coisa que o distinto fazia de forma tão desabrida e corajosa durante a ditadura militar (chamada também de "regime de exceção") contra presos políticos algemados - e alegará desconfortos inenarráveis sofridos no convívio com vizinhos, amigos e colegas de trabalho por conta das minhas aleivosias, das quais eles todos indubitavelmente terão tomado conhecimento, estabelecendo de pronto a relação familiar e passando a olhar de lado para o já tão sofrido parente.

Como se sabe, indignação de parente é causa para verdadeira guerra santa, para uma cruzada incansável contra o infiel que conspurca (suja, infama, corrompe) dessa forma a memória do falecido, que mancha assim levianamente, e assim indelevelmente, a sua reputação.

Um processo judicial desses terá boas "chances" de prosperar e chegar a bom termo (do ponto de vista do proponente, aquele que supostamente se viu ofendido). E por dois singelos motivos: porque o Coronel Ustra já declarou textualmente "Eu nunca fui torturador" e porque, apesar de todas as provas, indícios, documentos, testemunhos, depoimentos, evidências e singularidades, o processo aberto contra ele "ainda não transitou em julgado, esgotados todos os recursos que a Lei permite". Desta forma, a presunção é que o sr. Brilhante seja inocente. E, se ele é inocente por enquanto, nem eu nem ninguém pode chamá-lo de torturador, encargo que as Forças Armadas, à época, reservavam apenas aos "machos" das suas fileiras, coisa que hoje procuram dissimular, dizendo que nada houve além de uma "guerra suja" e, simultaneamente, protegendo e homenageando os sádicos que, sob codinomes "criativos" (grande "macho" das casernas, de 1970 a 1974 o Coronel, durante o seu comando do DOI, o maior centro de tortura de São Paulo, encarnou o "Doutor Tibiriçá"), se entregavam com gosto e prazer ao ofício de arrancar confissões como quem arranca unhas - arrancando-as também, "en passant".

Como comentava a Regina Carvalho outro dia, sobre a crescente proibição de livros por supostos danos morais, "o que mais assusta nesses casos todos é observar que eles ocorrem não pelo teor calunioso que possa haver nas obras, mas sim para evitar que chegue ao conhecimento público aquilo que as pessoas de fato fizeram".

Durma-se com uma honra dessas...

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 27/08/2008
Código do texto: T1147789
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