Amargura dissolvida
Quem visse aquele homem que caminhava solitário, no frio e na chuva pequena que tomava conta da cidade, poderia apenas estranhar o seu gorro protetor da cabeça. Muito bem colocado e novo, chamava a atenção.
Seu andar era aparentemente tranqüilo. Não olhou para trás nenhuma vez, embora o lugar onde estivesse não inspirava confiança nenhuma. Mas os passos quase cadenciados, militares, não chamavam a atenção de ninguém. Passos firmes e determinados.
Traje comum. Uma bota de cano curto, elegante, jeans, camisa comum e uma japona militar. Ideal para esconder a Colt calibre 45 que ele portava. Estava encaminhando-se para um parque, e tendo perdido mulher e filha num acidente, havia resolvido que só um tiro na cabeça acabaria com a tristeza, a solidão e a falta de objetivo na sua vida, que fora muito feliz por vinte e sete anos. Isto acontece com muitos. Mas ele não queria saber de fatos, providências, auxílio. Sem suas queridas mulheres, tão amadas e razão da sua vida. O comandante Gouveia, de família tradicional na Marinha, entrara em profunda falta de existência na vida.
De que lhe valia ser um oficial com tantos feitos e condecorações por merecimento? Estava só no mundo. O parque, escondido de todos, era um excelente lugar para acabar com a sua vida que para o velho marinheiro não tinha mais valor algum.
É muito triste esta situação, por quais muitos passam. Um homem vive uma vida, e em questão de segundos, uma capotagem com batida de automóveis termina com duas vidas e deixa outra sozinha, inconformada e incompleta. A Vida, por vezes, é madastra.
Estes reveses têm que ser enfrentados, mas muitas vezes, não há como. Um casamento feliz e uma filha moça enterrada não animam ninguém nesta vida.
O comandante Gouveia andava calmo. Em passo certo, dirigia-se ao parque. Seria mais um do grande rol de desamparados que iria fazer estatística.
Esperto como deve ser um bom profissional da arte do combate, viu o carro que ia a poucos metros ser assaltado por outro. Como caminhava na escuridão, não foi visto. Aproximando-se rapidamente, não foi notado. Gouveia deu apenas dois tiros.
Foram suficientes para liquidarem os bandidos.
Hoje ele vive numa bela casa. O novo casal que salvou encantou-se pelo velho marinheiro, que tantas histórias contava, e era um novo pai para ambos.
Acabou sendo avô de dois belos pirralhos. Avô sim, pai de casal que nunca imaginou ter tamanha proteção paternal...
A Vida, como sempre, traz muitas surpresas.