NUMEROSOFIA

Ernesto amanhecera naquela manhã com uma colossal dor de cabeça. Daquelas digna de uma ressaca de vinho de garrafão, em que até piscar dói. E o pior é que não bebia há mais de uma semana. Era professor de matemática de uma escola estadual de primeiro grau, e como, excepcionalmente, a categoria não estava em greve, teria que ir dar aula. Sua salvação era que tinha um irmão que estava desempregado e morava com ele, na casa de sua mãe. Foi a ele que Ernesto pediu um enorme favor. Aliás, da enormidade desse favor o Plínio sequer suspeitava, tendo, inclusive, subestimado a tarefa da qual o irmão incumbir-lhe-ia. E tal tarefa, de fato aparentemente banal, era a de substituí-lo na escola. Colocou uma condicional para aceitar a missão:

- Depende do assunto! Tem coisa que eu já não me lembro direito!

- É sobre números pares e ímpares.

- E o que mais?

- Mais nada. Só isso mesmo.

- Então tá mole, maninho! Deixa que eu tiro de letra!

E lá se foi o Plínio, despreocupado da vida, em direção ao abatedouro, digo, colégio. Em lá chegando colocou o diretor a par da situação e dirigiu-se à sala de aula, ansioso por conhecer aqueles que seriam seus algozes, digo, alunos.

Após se apresentar, disse:

- Bom, hoje vamos estudar os números pares e ímpares. Vocês sabem o que são números pares e ímpares?

- Pares são 2, 4, 6, 8 e 10, e ímpares são 1, 3, 5, 7 e 9, apressa-se Magda em responder.

- Muito bom. Mas quem saberia dizer porquê o número 8, por exemplo, é par?

Silêncio.

- Pois é isso que estudaremos hoje. Número par é todo número que é divisível por 2.

- Professor, pergunta o Carlinhos, quer dizer então que a resposta da Magda tava errada, né?

- Não, tava certinha. Só que ela respondeu quais são os números pares, e não o que são, que foi o que eu perguntei.

- Desculpa professor, mas a resposta dela tava era errada mesmo!

- Mas por quê? Dê então um exemplo de número terminado em 0, 2, 4, 6 e 8 que não seja par!

- 1,6.

- Ah não, mas aí não vale! Tem que ser número inteiro!

- Ué, mas eu falei o número inteiro: 1,6!

- É, já senti que o Ernesto não ensinou números inteiros. Tem que ser um número sem vírgula. Todo número par ou ímpar é sem vírgula.

- Discordo, disse Paulinho.

- Por quê?

- 2 é par?

- É claro!

- E 2,0?

- Também.

- Mas o senhor não acabou de dizer pro Carlinhos que tem que ser número sem vírgula?

- Bom, vamos fazer o seguinte; vou ensinar-lhes uma regrinha: par tem que ser um número sem vírgula ou só com zero depois da vírgula, e que quando é dividido por 2 não sobra resto. Se sobrar resto é impar. É só seguirem essa regrinha que ela é infalível!

A aula prossegue normalmente, até que a Marcinha, que tinha um irmão mais velho que adorava ensinar coisas antes da hora pra menina, pergunta:

- Professor, todo número primo é par?

- Não, muito pelo contrário. Com exceção do 2 todo número primo é ímpar.

- Então não tô entendendo mais nada! O senhor não disse que par é todo número divisível por 2?

- Disse.

- Pois meu irmão me disse que primos são aqueles números que são divisíveis somente por 2. Então, todo número primo é par!

Plínio saiu do sério. Disse para que ela esquecesse esse negócio de número primo, que isso não era assunto da aula. Um dia o Ernesto ensinaria para eles que primos não são os números divisíveis por 2 coisa nenhuma, e sim divisíveis apenas por dois números. Após o sabão voltou ao assunto do dia. Daí a uns poucos minutos ouve um bafafá lá no fundo da sala. Ao perguntar qual era o problema, Lucas responde:

- O problema é que, inspirado pelo assunto da aula, eu disputei um par ou ímpar com o Tadeu e ganhei, mas ele tá dizendo que ninguém ganhou.

- Que número deu?

- Deu lona, disse Tadeu. E “0” não é par nem ímpar!

- É, de fato o Tadeu tem razão. Vocês terão que disputar de novo. Mas por favor, só na hora do recreio!

Lucas, inconformado, protestou:

- Peraí professor, eu dividi “0” por 2 e não sobrou resto nenhum! Então, pela sua “regrinha infalível” “0” é par!

Maristela toma a defesa do colega:

- É professor, eu acho que o Luquinhas tá certo: 10 é par; 100 é par; 1000 é par. Se todo número que termina em 2, 4, 6 e 8 é par porque 2, 4, 6 e 8 são pares, então todo número que termina em “0” é par porque “0” é par!

Lucas, empolgado com a oportuna adesão à sua tese, e sentindo que o professor estava confuso, aproveitou-se do momento:

- E não é só isso não! O senhor concorda comigo que o par ou ímpar é um modo de disputa usado no mundo inteiro?

- Imagino que sim, disse, sem entender onde o menino queria chegar.

- E a que o senhor atribui um sucesso tão grande?

- Ora, sem dúvida que é ao fato de ambos os participantes disputarem com igualdade de chances de vitória!

- Pois era aí mesmo que eu queria que o senhor chegasse. Permite que eu vá aí na frente mostrar que estou certo?

- Lógico, pode vir.

- Bom, pra encurtar a explicação o senhor faça-me o favor de disputar um par ou ímpar comigo. Bota uma mão pra trás.

Plínio, meio constrangido, com medo de ser flagrado por algum inspetor, mas já muito curioso para saber onde é que aquilo ia dar, topou.

- Eu quero ímpar, disse Lucas.

- Par.

- Um, dó, lá, si, já! Três, venci!

- Tá bom, venceu, e daí? “0” continua não sendo par nem ímpar! Você venceu como eu poderia ter vencido. Tínhamos a mesma probabilidade de vitória!

- Pois é aí que o senhor se engana. Em todo par ou ímpar escolho ímpar e entro com lona. Meu adversário tem então 6 opções: pode entrar com 0, 1, 2, 3, 4 ou 5. Se entrar com lona a disputa é anulada. Se entrar com 1, 3 ou 5 eu venço; e se entrar com 2 ou 4 eu perco. Eu tenho então 60% de chance contra 40% dele. Agora, se o senhor concordar comigo que “0” é par cada um passa a ter 50% de chance, e o par ou ímpar volta a ser uma disputa justa. Hoje, excepcionalmente, estou defendendo este ponto de vista porque o Tadeu escolheu ímpar antes que eu, e como deu lona, eu ganhei. Mas quando eu sou ímpar, estrategicamente não reclamo que achem que “0” não é par nem ímpar.

Plínio estava boquiaberto. O menino podia até não ter razão, mas tinha argumentos de difícil refutação. Para sua sorte o Rodrigo mudou de assunto:

- Professor, qual desses números é mais par: 12 ou 24?

- Ô, meu filho, não existe número mais par que outro.

- Eu heim, tem alguma coisa errada aí! O 12 é formado pelo 1, que é ímpar, e pelo 2, que é par. Já o 24 é formado por 2 pares. Então ele deveria ser mais par!

- Nesse momento Lucas interrompe a interrupção de sua discussão e cobra do professor um veredito final sobre a questão do “0”. Mas Plínio foi salvo pelo gongo; literalmente. O sinal tocou e a turma debandou num segundo. Só o tal Lucas e o Tadeu permaneceram na sala, fitando o professor. Plínio saiu-se com a desculpa de que era melhor responder com a turma toda presente, no dia seguinte, e esvaiu-se, de mansinho. Ia passar o abacaxi para o irmão. Aliás, sempre fizera pouco caso do trabalho do mano, e hoje comprovara que, sem dúvida, não era tarefa para qualquer um não. No caminho de volta para casa fez uma avaliação nada positiva de sua aula. De positivo mesmo considerou não o pouco que ensinou, mas o muito que aprendeu: uma técnica totalmente lícita de levar vantagem, quem diria, no par ou ímpar! Como bom discípulo da Lei de Gerson tinha ficado muito satisfeito com o novo aprendizado.

Chegando em casa encontrou o irmão já com melhor aspecto.

- E aí mano, tô vendo que já está melhor! Bom, deixa eu lhe colocar a par de como foi a aula. Opa, a par não! Por hoje chega!