CRÔNICA DE UMA VIAGEM
A ansiedade, os preparativos, os cuidados para que tudo esteja à mão na hora da saída, a documentação já organizada junto às passagens, os últimos momentos antes da viagem, as despedidas que vêm com os abraços e o desejo de boa viagem entre lágrimas de saudade iniciada.
E lá estava o carro para nos conduzir até o aeroporto, minha sogra toda alvoroçada com o frenesi do instante, a bagagem jogada de qualquer maneira no bagageiro, então partimos no meio da noite sob o luar sereno e as pálidas luzes dos postes que nos piscavam de ambos os lados. O ar frio da madrugada esvoaçava-me os cabelos e brincava com os meus olhos, e, ao meu lado, pegando na minha mão com a maciez da sua, minha esposa esboçava um lindo sorriso de alegria incontida. E me contagiou. Rimos de mãos dadas escutando o sussurro do vento e murmurando frases de entusiasmada euforia à medida que o carro vencia as ruas esburacadas pelas chuvas de verão e ganhava distância rasgando a noite.
Como sempre, o pátio do aeroporto estava coalhado de veículos de todos os tipos como se eles fossem um bando de insetos mortos e petrificados ou paralisados por alguma arma letal. Brilhavam ao luar. Mas assustei-me sobremaneira com o saguão logo à entrada, pois uma fila quase quilométrica fazia curvas na direção do guichê da companhia aérea que nos levaria novamente às Serras Gaúchas. Que seria aquilo? Por que tanta gente enfileirada parecendo bonecos-dominó? Dir-se-ia que todo mundo tinha resolvido viajar naquele horário, e eu tive o pressentimento de que não caberia tanta gente num por mais que aumentassem o número de aviões. Estariam eles indo para as olimpíadas? É que a maioria tinha aspecto de estrangeiro e o linguajar entre eles se mostrava uma algaravia incompreensível. Apressei-me na direção de um funcionário da T.. e perguntei a respeito. Pondo os olhos sobre mim de cima a baixo, num relance de indiferença, deixou a voz fluir sem qualquer emoção. "Sobre o seu vôo por favor dirija-se àquele outro guichê", disse-me todo dândi. Fui quase correndo na direção apontada, lá deparando com dois senhores, um deles a gesticular com as mãos e franzir a testa expondo o bravo ar de carranca. E antes que indagasse sobre qualquer assunto à jovem que os atendia toda enrolada, um dos homens veio ao meu encontro e, estampando cara de poucos amigos, falou entredentes e enraivecido: "Você é passageiro do vôo 3276?" Sim, respondi começando a sentir a pulga atrás da orelha. "Foi cancelado!" A exclamação soou bombástica. Vi que ele fez mesmo questão de deixar essa impressão. Alarmado, indaguei à moça do outro lado do balcão a respeito.
"É verdade", disse a funcionária da T.., "seu embarque ocorrerá somente às quatro horas e quarenta e cinco minutos." Depois dessa afirmativa seguiram-se intermináveis minutos de negociações, telefonemas, discussões, caras feias, vozes alteradas, o raio que o parta! Ela tentava resolver, ao mesmo tempo, o problema de nós três. Eu, de Natal, um cientísta expert em física quântica, do México, e o baixinho entroncado com cara de poucos amigos de Porto Alegre, para onde iríamos e, daí, para Gramado. As angústias de cada um foram sendo resolvidas paulatinamente. O gaúcho primeiro. Ganhou vale-refeição para esperar a hora da viagem empanturrado e saiu não tão feliz da vida. Não demorou cinco minutos estava de volta ainda mais enfurecido quando o meu caso prosseguia via telefonemas para Porto Alegre a respeito de meu traslado. A lanchonete não aceitara a vale-refeição da T.. Novos desentendimentos e falatório, ele realmente "fulo" da vida ante tudo aquilo. Eu lá, esperando a hora de ser atendido. Minha esposa assistia a tudo expressando no rosto sua revolta diante de tanto descalabro aéreo. Por fim o gaúcho saiu em busca de outra lanchonete, e acredito que tenha logrado seu intento pois não voltou mais para reclamar. E o cientista? Calado, coitado, nunca vi tanta paciência. Tanto é que o meu problema ficou resolvido antes do dele, mesmo ele tendo chegado primeiro do que eu, e nem assim deixou escapar dos lábios o sorriso de compreensão. Houve um momento em que conversamos em espanhol, depois em inglês, sobre sua presença em Natal para participar de um congresso de física nuclear. Trocamos e-mails e ele me prometeu enviar um tratado sobre a rota dos foguetes na velocidade da luz.
Mas não fui bobo de ficar esperando no próprio aeroporto mais de quatro horas para embarcar. Exigi táxi e hotel. E fui atendido. Ah, ganhei até o indefectível vale-refeição que deveras alegrou a vida do gaúcho. Só que o hotel, embora situado na Via Costeira, era velho, um tanto sujo e cheio de mofo. Não valeu nem o trajeto de táxi do aeroporto até lá, longe em demasia, tantos foram os buracos nas ruas molhadas pelas chuvas de verão.
A ansiedade, os preparativos, os cuidados para que tudo esteja à mão na hora da saída, a documentação já organizada junto às passagens, os últimos momentos antes da viagem, as despedidas que vêm com os abraços e o desejo de boa viagem entre lágrimas de saudade iniciada.
E lá estava o carro para nos conduzir até o aeroporto, minha sogra toda alvoroçada com o frenesi do instante, a bagagem jogada de qualquer maneira no bagageiro, então partimos no meio da noite sob o luar sereno e as pálidas luzes dos postes que nos piscavam de ambos os lados. O ar frio da madrugada esvoaçava-me os cabelos e brincava com os meus olhos, e, ao meu lado, pegando na minha mão com a maciez da sua, minha esposa esboçava um lindo sorriso de alegria incontida. E me contagiou. Rimos de mãos dadas escutando o sussurro do vento e murmurando frases de entusiasmada euforia à medida que o carro vencia as ruas esburacadas pelas chuvas de verão e ganhava distância rasgando a noite.
Como sempre, o pátio do aeroporto estava coalhado de veículos de todos os tipos como se eles fossem um bando de insetos mortos e petrificados ou paralisados por alguma arma letal. Brilhavam ao luar. Mas assustei-me sobremaneira com o saguão logo à entrada, pois uma fila quase quilométrica fazia curvas na direção do guichê da companhia aérea que nos levaria novamente às Serras Gaúchas. Que seria aquilo? Por que tanta gente enfileirada parecendo bonecos-dominó? Dir-se-ia que todo mundo tinha resolvido viajar naquele horário, e eu tive o pressentimento de que não caberia tanta gente num por mais que aumentassem o número de aviões. Estariam eles indo para as olimpíadas? É que a maioria tinha aspecto de estrangeiro e o linguajar entre eles se mostrava uma algaravia incompreensível. Apressei-me na direção de um funcionário da T.. e perguntei a respeito. Pondo os olhos sobre mim de cima a baixo, num relance de indiferença, deixou a voz fluir sem qualquer emoção. "Sobre o seu vôo por favor dirija-se àquele outro guichê", disse-me todo dândi. Fui quase correndo na direção apontada, lá deparando com dois senhores, um deles a gesticular com as mãos e franzir a testa expondo o bravo ar de carranca. E antes que indagasse sobre qualquer assunto à jovem que os atendia toda enrolada, um dos homens veio ao meu encontro e, estampando cara de poucos amigos, falou entredentes e enraivecido: "Você é passageiro do vôo 3276?" Sim, respondi começando a sentir a pulga atrás da orelha. "Foi cancelado!" A exclamação soou bombástica. Vi que ele fez mesmo questão de deixar essa impressão. Alarmado, indaguei à moça do outro lado do balcão a respeito.
"É verdade", disse a funcionária da T.., "seu embarque ocorrerá somente às quatro horas e quarenta e cinco minutos." Depois dessa afirmativa seguiram-se intermináveis minutos de negociações, telefonemas, discussões, caras feias, vozes alteradas, o raio que o parta! Ela tentava resolver, ao mesmo tempo, o problema de nós três. Eu, de Natal, um cientísta expert em física quântica, do México, e o baixinho entroncado com cara de poucos amigos de Porto Alegre, para onde iríamos e, daí, para Gramado. As angústias de cada um foram sendo resolvidas paulatinamente. O gaúcho primeiro. Ganhou vale-refeição para esperar a hora da viagem empanturrado e saiu não tão feliz da vida. Não demorou cinco minutos estava de volta ainda mais enfurecido quando o meu caso prosseguia via telefonemas para Porto Alegre a respeito de meu traslado. A lanchonete não aceitara a vale-refeição da T.. Novos desentendimentos e falatório, ele realmente "fulo" da vida ante tudo aquilo. Eu lá, esperando a hora de ser atendido. Minha esposa assistia a tudo expressando no rosto sua revolta diante de tanto descalabro aéreo. Por fim o gaúcho saiu em busca de outra lanchonete, e acredito que tenha logrado seu intento pois não voltou mais para reclamar. E o cientista? Calado, coitado, nunca vi tanta paciência. Tanto é que o meu problema ficou resolvido antes do dele, mesmo ele tendo chegado primeiro do que eu, e nem assim deixou escapar dos lábios o sorriso de compreensão. Houve um momento em que conversamos em espanhol, depois em inglês, sobre sua presença em Natal para participar de um congresso de física nuclear. Trocamos e-mails e ele me prometeu enviar um tratado sobre a rota dos foguetes na velocidade da luz.
Mas não fui bobo de ficar esperando no próprio aeroporto mais de quatro horas para embarcar. Exigi táxi e hotel. E fui atendido. Ah, ganhei até o indefectível vale-refeição que deveras alegrou a vida do gaúcho. Só que o hotel, embora situado na Via Costeira, era velho, um tanto sujo e cheio de mofo. Não valeu nem o trajeto de táxi do aeroporto até lá, longe em demasia, tantos foram os buracos nas ruas molhadas pelas chuvas de verão.