Meu amigo Silva
Casara-se três vezes, mas a vida sempre arranjou um jeitinho de lhe reservar os maiores infortúnios – a primeira esposa morreu em desastre de automóvel, a segunda fugiu com um padre, e a terceira foi flagrada na cama com seu melhor amigo – mas apesar dos pesares o pobre homem acabou me confidenciando, depois do terceiro copo de cachaça, que não via nisso motivo suficiente para queixar-se ou maldizer a vida.
- O importante é não perder a fé – dizia ele.
Não perder a fé... Não sei se me assombrava ou se me consternava diante dessas palavras; ainda mais se levamos em consideração que todos esses infortúnios eram apenas os de sua vida amorosa, portanto, nem queiram imaginar os outros, disso cuido eu. Francinaldo da Silva, esse é o nome dele, carregava consigo um currículo invejável de desventuras, o próprio nome já anunciava sua miséria. Mas também com um nome desses não é possível que fosse diferente. Devo confessar que não conto sua história sem amargar um pouco de remorso, afinal de contas prometi guardar segredo das coisas que havia me contado; mas enfim, a culpa é dele, por ter acreditado na promessa de um bêbado.
“Pobre homem, não merecia isso...” vão dizer os leitores piedosos. Mas de qualquer forma, não venha o leitor me censurar acusando-me de canalhismo e nem venha dizer que procuro desforrar o meu tédio falando da vida alheia, pois nesse ponto, tirando a parte que me toca, sou obrigado a concordar plenamente. Agora se o distinto leitor prefere preservar sua integridade e não se rebaixa ao ponto de se interessar por fofocas, favor, se retire, ainda é tempo.
Francinaldo da Silva disse-me que nascera em Igarapé do Meio, pequeno município do Maranhão, e que ainda muito moço já trabalhava numa pequena lavoura com o avô. Já casado, com duas filhas, sendo uma ainda de colo, perdeu a esposa num acidente: “Ela estava dormindo na carroça quando a Kombi veio vindo e atropelou a gente”. Sofreu o diabo, danou-se na vida, mas não entregou os pontos, casou-se de novo, agora com a irmã mais nova da finada: “Cidade pequena, pouca opção, essas coisas, sabe?”
Mas sua vida – isso vale lembrar - era vida de Silva, e não contente com pouca miséria, cuidou de lhe arranjar mais uma desgraça. Acontece que o avô acabara de morrer e coube a ele a administração da pequena propriedade, mas isso justamente num daqueles períodos de seca. Como a safra não rendesse, Francinaldo rogou, ao lado da nova esposa, a ajuda de Santo Expedito - o santo das causas justas e urgentes - e lhe veio o próprio padre da cidade em auxílio.
A princípio, com a exclusiva finalidade de abençoá-lo, o padre ia a sua casa duas vezes por semana, às terças e quintas; depois parece que o padre tomou gosto pela caridade, e passou a visitar três, quatro, cinco, e por fim, durante os sete dias da semana, e acrescentava que fazia isso porque o caso era de urgente necessidade. E não havia na pequena Igarapé um só cristão que desconfiasse das boas intenções do bom sacerdote. Mas as coisas desandaram e a reza não deu jeito.
“A reza não! A safadeza daquela mulher e daquele padre filho do cão!”. “Nesse dia eu virei bicho, dei de pegar espingarda e tudo; mas Deus é pai e não permitiu que os encontrasse. Se não... Quando fui ver já tinham fugido”.
Dessa maneira, Francinaldo viu-se obrigado a vender seus punhadinhos de terra a um antigo agricultor que há muito vinha ampliando suas posses na região. Por fim, deu a idéia doida de partir para Brasília. “A promessa de emprego fácil, vida nova, essas coisas da época”.
Francinaldo da Silva, sozinho, com cinco filhos em Brasília. Não podia se dá ao luxo de sofrer crises existenciais, isso é chique por demais, é coisa pra quem tem dinheiro; pobre tem mesmo é que tocar a vida em frente, sem muita frescura, o certo é sair empurrando com a barriga. Disse que comia um pastel com as crianças na rodoviária quando foi interpelado por um sujeito que convocava operários para uma obra. “Aqui eu fiz de tudo. Ergui prédios, escolas, hospital, tudo que você vê aqui tem um dedo meu”. Casou-se de novo. “Era uma conterrânea minha, também do Maranhão. Com ela tive mais dois e me mandei pra Ceilândia”. A terceira grande desventura conjugal é aquela, flagrou a esposa com o melhor amigo em sua própria cama. “O safado ainda tentou se defender, dizendo que foi lá trocar o gás. Muita cara de pau mesmo!”.
- Mas e aí, o senhor ainda pretende se casar de novo?
- É claro! Me caso no próximo mês; noivei com a Dolores, o grande amor da minha vida.
E fiquei ali escutando aquele pobre desventurado a falar com entusiasmo da futura esposa, atribuindo-lhe as qualidades mais nobres e santas, acreditando piamente no amor. O importante é não perder a fé... Falou com entusiasmo sobre o futuro do país, e não descarregou em mim nenhuma mágoa da vida. Contou-me que sempre votou no Lula e que se pudesse votaria nele de novo. Quando ele me falou isso, lembrei-me de uma crônica do velho Braga, datada de 1935, em que este profetizava a chegada da pobre família Silva ao poder. Daí passei a falar sobre a crônica para ele, expliquei-lhe que a crônica é um texto que se lê nos jornais, geralmente curta e que esta que eu contava era a estória da família Silva, sua crônica dizia que a família Silva ainda chegaria ao poder, e que era escrita pelo Rubem Braga, um cronista lá do Espírito Santo. Ele se interessou e me pediu para lê-la, assim que pudesse.
Francinaldo ainda me disse coisas engraçadas, disse que o dedo mutilado do Lula é obra divina, segundo sua hipótese Deus pensou mais ou menos assim: “Eu vou arrancar um dedo dele pra quando ele chegar no poder não se esquecer que foi um Silva”.
Antes de nos despedimos eu ainda lhe perguntei de onde ele tirava tanta alegria com uma vida tão sofrida. Ele sorriu. E me disse que o importante era ter fé e acrescentou que eu ainda era muito novo para entender essas coisas. Fiquei calado. Era como se a grandeza da sua fé denunciasse em mim a pequeneza da minha.
Agora vejo que sua história, contada assim numa crônica, parece uma anedota. Em alguns trechos lembra uma piada; noutros há suaves transposições líricas do cotidiano, uma coisa meio pitoresca, vão dizer. Como se realmente fosse escrita para desafogar o leitor de sua rotina tantas vezes triste, como se fosse escrita para desforrar o escritor de seu pesado tédio existencial – essas frescuras que os escritores se dão ao luxo de sentir. E embora pareça que Francinaldo da Silva exista, embora sua história pareça com a de milhares de Silvas que vivem soltos por aí, embora tenha algumas semelhanças com alguém que conhecemos ou que ouvimos falar, o nosso Francinaldo não passa de uma invencionice, isso mesmo meus amigos, pasmem diante da revelação... Meu Francinaldo da Silva não passa de uma cômica caricatura que separa o cronista do verdadeiro Silva. Até porque, convenhamos, o verdadeiro Silva está aí no mundo, levando uma vida muito mais dura, e não aqui nesta crônica metida à engraçadinha.
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