Um Novo Olhar
- Odeio São Paulo. Vou a São Paulo de mau-humor. São Paulo suga as minhas energias.
Com esse discurso me preparava para mais uma viagem de serviço à terra da garoa. Quando me deitei, na véspera, um pouco irritada com as perspectivas da viagem, pensava que faria exatamente como das outras vezes: aeroporto-evento, evento-hotel, hotel-evento, evento-aeroporto. Algumas variações apenas no horário do almoço com os colegas nos restaurantes próximos. A janta, quase sempre, é a excelente canja, encomendada na própria cozinha do hotel. Digam o que quiserem, pouco me importa estar na capital mundial da gastronomia, a sopinha de galinha é saudável, segura e não engorda... muito. Ainda levo roupas e um par de tênis para fazer longas caminhadas... na esteira da academia do hotel. Desta vez, havia mais um motivo para encorujar-me: meu notebook, com acesso wireless configurado. Já me imaginava tirando o atraso das leituras, escrevendo e publicando meu textos. Aliás, dois motivos: desta vez, não ficaríamos no hotel de sempre, mas num outro, com péssimas referências, especialmente no que se refere à sua localização, ao lado da cracolândia, de vários cinemas pornôs, sex-shops e pousadas “fast food”.
Meus planos começaram a se degringolar quando descemos do táxi. Descobri logo que o novo hotel, patrimônio histórico do município paulista, não tem academia, no frigobar só tem bebidas, o cardápio é pífio e a Internet sem fio pela qual troquei a possibilidade de acomodar-me num andar para não fumantes (onde o sinal seria fraco), mostrou-se um fiasco.
Por outro lado, a janela protegida apenas por uma translúcida cortina, presenteou-me com uma vista fascinante da cidade e suas luzes, emoldurada à direita pelas torres escuras da gótica Igreja de Santa Efigênia. Diante desse espetáculo e da companhia de um amigo do trabalho, ousei colocar os pés na rua em busca de comida, não sem antes obter as dicas de opções na recepção do hotel e certificar-nos quanto à segurança de um passeio a pé, naquele horário, a despeito da vizinhança pouco recomendável. Descubro que estamos a poucos metros da tão famosa esquina da Ipiranga com a São João e alguma coisa acontece no meu coração.
Sentamo-nos na varanda do famoso Bar Brahma de frente para as placas com os nomes das avenidas. Daí em diante, passei a ver a cidade com outros olhos.
"Alguma coisa acontece
No meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga
E a Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui
Eu nada entendi
Da dura poesia concreta
De tuas esquinas
Da deselegância discreta
De tuas meninas...
Ainda não havia
Para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece
No meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga
E a Avenida São João..."
Sampa (Caetano Veloso)
Foram três dias de intensas atividades profissionais, mas cada minuto de folga foi aproveitado da melhor forma possível. Por pouco, não conseguimos encaixar um teatro.
"É sempre lindo andar na cidade de São Paulo
O clima engana, a vida é grana em São Paulo
A japonesa loura, a nordestina moura de São Paulo
Gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo
Na grande cidade me realizar
Morando num BNH.
Na periferia a fábrica escurece o dia."
São Paulo, São Paulo (Oswaldo, Biafra, Claus, Marcelo e Wandy)
Distraidamente, cantarolava as músicas que homenageiam, ainda que com alguma ironia, a terra dos intensos engarrafamentos, ligeiramente reduzidos pela nova regulamentação que proíbe o trânsito de caminhões nas ruas centrais da cidade em determinados horários.
"Na Paulista os faróis já vão abrir
E um milhão de estrelas prontas pra invadir os jardins
Onde a gente aqueceu numa paixão
Manhãs frias de abril
Se a avenida exilou seu casarões,
Quem reconstruiria nossas ilusões?
Me lembrei de contar pra você nesta canção
Que o amor conseguiu"
Paulista - (Eduardo Gudin)
Me dei conta de que tudo isso não se deveu a qualquer mudança ou melhoria na grande metrópole. Continua perigosa, populosa, poluída... Nenhum trajeto pode ser realizado considerando-se apenas as variáveis mais lógicas: distância e potência do automóvel. Nuvens escuras no céu provocam pânico aos paulistanos, que sabem que a cidade, já normalmente congestionada, fica travada sob a fúria de São Pedro. Minha garganta parecia irritada pelas mudanças bruscas de temperatura - fazia calor, mas todos os ambientes fechados pareciam ter sua temperatura programada por pingüins. Na segunda noite, voltando ao hotel, o taxista passou lentamente pela tal Cracolândia. A imagem era de um filme de terror, onde zumbis, muitos zumbis, caminham a esmo pelas ruas, ansiosos por encontrar cérebros humanos para devorar. Uma cena chocante, especialmente por sabermos que não se trata de ficção e os cérebros devorados são os dos próprios zumbis. Deprimente.
"Mil, quinhentos e cinqüenta e quatro,
Quando de um colégio, deu-se a fundação,
Nasceu a capital de um estado,
Desta nação.
Que seria líder das demais,
Hoje a cidade que mais cresce neste mundo,
É cidade dos arranha-céus,
Maior centro cultural,
E industrial,
No trabalho, vem e vai,
Isto é São Paulo,
Meu Brasil,
Isto é São Paulo,
Meu Brasil."
Isto é São Paulo (Kazinho)
Ainda assim, voltei para Brasília exausta e feliz. Uma estranha sensação de férias bem aproveitadas. Chegou a dar remorso, pois sabia que aqui, o circo estava pegando fogo, todo mundo assoberbado de trabalho.
Se esta minha viagem foi tão melhor do que todas as outras, a diferença, definitivamente, não está na cidade. Apenas a minha predisposição era outra. Decidi-me dar a São Paulo um novo olhar. E funcionou. Hoje meu discurso é outro e penso que já não sofrerei mais quando precisar voltar à maior cidade do País, terceira maior do mundo.
O melhor disso tudo é que agora vou aplicar essa postura em minha vida daqui por diante. Lançar um novo olhar, mais complacente a tudo aquilo que me entristece ou aborrece: trânsito, segundas-feiras, fila, frio, chuva, solidão, saudades...
Algumas coisas, porém, temo que jamais verei com verdadeiro encantamento: egoísmo, mentira, crueldade, vícios, violência, covardia, guerras, terrorismo, corrupção, miséria...
Para essas, não me bastaria um novo olhar, mas um novo coração, muito mais duro... como o concreto da grande cidade que eu aprendi a admirar.
- Odeio São Paulo. Vou a São Paulo de mau-humor. São Paulo suga as minhas energias.
Com esse discurso me preparava para mais uma viagem de serviço à terra da garoa. Quando me deitei, na véspera, um pouco irritada com as perspectivas da viagem, pensava que faria exatamente como das outras vezes: aeroporto-evento, evento-hotel, hotel-evento, evento-aeroporto. Algumas variações apenas no horário do almoço com os colegas nos restaurantes próximos. A janta, quase sempre, é a excelente canja, encomendada na própria cozinha do hotel. Digam o que quiserem, pouco me importa estar na capital mundial da gastronomia, a sopinha de galinha é saudável, segura e não engorda... muito. Ainda levo roupas e um par de tênis para fazer longas caminhadas... na esteira da academia do hotel. Desta vez, havia mais um motivo para encorujar-me: meu notebook, com acesso wireless configurado. Já me imaginava tirando o atraso das leituras, escrevendo e publicando meu textos. Aliás, dois motivos: desta vez, não ficaríamos no hotel de sempre, mas num outro, com péssimas referências, especialmente no que se refere à sua localização, ao lado da cracolândia, de vários cinemas pornôs, sex-shops e pousadas “fast food”.
Meus planos começaram a se degringolar quando descemos do táxi. Descobri logo que o novo hotel, patrimônio histórico do município paulista, não tem academia, no frigobar só tem bebidas, o cardápio é pífio e a Internet sem fio pela qual troquei a possibilidade de acomodar-me num andar para não fumantes (onde o sinal seria fraco), mostrou-se um fiasco.
Por outro lado, a janela protegida apenas por uma translúcida cortina, presenteou-me com uma vista fascinante da cidade e suas luzes, emoldurada à direita pelas torres escuras da gótica Igreja de Santa Efigênia. Diante desse espetáculo e da companhia de um amigo do trabalho, ousei colocar os pés na rua em busca de comida, não sem antes obter as dicas de opções na recepção do hotel e certificar-nos quanto à segurança de um passeio a pé, naquele horário, a despeito da vizinhança pouco recomendável. Descubro que estamos a poucos metros da tão famosa esquina da Ipiranga com a São João e alguma coisa acontece no meu coração.
Sentamo-nos na varanda do famoso Bar Brahma de frente para as placas com os nomes das avenidas. Daí em diante, passei a ver a cidade com outros olhos.
"Alguma coisa acontece
No meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga
E a Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui
Eu nada entendi
Da dura poesia concreta
De tuas esquinas
Da deselegância discreta
De tuas meninas...
Ainda não havia
Para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece
No meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga
E a Avenida São João..."
Sampa (Caetano Veloso)
Foram três dias de intensas atividades profissionais, mas cada minuto de folga foi aproveitado da melhor forma possível. Por pouco, não conseguimos encaixar um teatro.
"É sempre lindo andar na cidade de São Paulo
O clima engana, a vida é grana em São Paulo
A japonesa loura, a nordestina moura de São Paulo
Gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo
Na grande cidade me realizar
Morando num BNH.
Na periferia a fábrica escurece o dia."
São Paulo, São Paulo (Oswaldo, Biafra, Claus, Marcelo e Wandy)
Distraidamente, cantarolava as músicas que homenageiam, ainda que com alguma ironia, a terra dos intensos engarrafamentos, ligeiramente reduzidos pela nova regulamentação que proíbe o trânsito de caminhões nas ruas centrais da cidade em determinados horários.
"Na Paulista os faróis já vão abrir
E um milhão de estrelas prontas pra invadir os jardins
Onde a gente aqueceu numa paixão
Manhãs frias de abril
Se a avenida exilou seu casarões,
Quem reconstruiria nossas ilusões?
Me lembrei de contar pra você nesta canção
Que o amor conseguiu"
Paulista - (Eduardo Gudin)
Me dei conta de que tudo isso não se deveu a qualquer mudança ou melhoria na grande metrópole. Continua perigosa, populosa, poluída... Nenhum trajeto pode ser realizado considerando-se apenas as variáveis mais lógicas: distância e potência do automóvel. Nuvens escuras no céu provocam pânico aos paulistanos, que sabem que a cidade, já normalmente congestionada, fica travada sob a fúria de São Pedro. Minha garganta parecia irritada pelas mudanças bruscas de temperatura - fazia calor, mas todos os ambientes fechados pareciam ter sua temperatura programada por pingüins. Na segunda noite, voltando ao hotel, o taxista passou lentamente pela tal Cracolândia. A imagem era de um filme de terror, onde zumbis, muitos zumbis, caminham a esmo pelas ruas, ansiosos por encontrar cérebros humanos para devorar. Uma cena chocante, especialmente por sabermos que não se trata de ficção e os cérebros devorados são os dos próprios zumbis. Deprimente.
"Mil, quinhentos e cinqüenta e quatro,
Quando de um colégio, deu-se a fundação,
Nasceu a capital de um estado,
Desta nação.
Que seria líder das demais,
Hoje a cidade que mais cresce neste mundo,
É cidade dos arranha-céus,
Maior centro cultural,
E industrial,
No trabalho, vem e vai,
Isto é São Paulo,
Meu Brasil,
Isto é São Paulo,
Meu Brasil."
Isto é São Paulo (Kazinho)
Ainda assim, voltei para Brasília exausta e feliz. Uma estranha sensação de férias bem aproveitadas. Chegou a dar remorso, pois sabia que aqui, o circo estava pegando fogo, todo mundo assoberbado de trabalho.
Se esta minha viagem foi tão melhor do que todas as outras, a diferença, definitivamente, não está na cidade. Apenas a minha predisposição era outra. Decidi-me dar a São Paulo um novo olhar. E funcionou. Hoje meu discurso é outro e penso que já não sofrerei mais quando precisar voltar à maior cidade do País, terceira maior do mundo.
O melhor disso tudo é que agora vou aplicar essa postura em minha vida daqui por diante. Lançar um novo olhar, mais complacente a tudo aquilo que me entristece ou aborrece: trânsito, segundas-feiras, fila, frio, chuva, solidão, saudades...
Algumas coisas, porém, temo que jamais verei com verdadeiro encantamento: egoísmo, mentira, crueldade, vícios, violência, covardia, guerras, terrorismo, corrupção, miséria...
Para essas, não me bastaria um novo olhar, mas um novo coração, muito mais duro... como o concreto da grande cidade que eu aprendi a admirar.