OS PASSAGEIROS

Para Jorge Lescano

Não, não se parecem com amantes em pleno ato de amor, nem com amigos no momento do reencontro, ainda que a epiderme de cada um toque fundo a epiderme de cada outro. Talvez se pareçam com os passageiros de um ônibus em direção à periferia, às seis da tarde, ou em direção ao centro, às seis da manhã.

Aqueles que não se assemelhama amigos nem a amantes, e sugerindo certa analogia com passageiros, têm com estes apenas alguma proximidade quanto à aderência dos corpos, e isso levando-se em conta somente os passageiros em pé que, com os que se encontram sentados, ainda que se toquem, dois cotovelos aqui, duas coxas ali, toda e qualquer comparação perde consistência, porque os corpos que não se assemelham a amantes nem a amigos não aderem dois cotovelos aqui, duas coxas ali.

Olhando-se o interior do ônibus de modo desatento, poderíamos interpretar o conjunto de passageiros apenas como bloco imóvel de múltiplas peças imperfeitamente articuladas, espécie de máquina inoperante. Toda ilusão se desfaz quando o ônibus pára no ponto para a entrada de novos passageiros, visto que estes, ao se inserirem no referido veículo, geram desestruturação na tal máquina pois, na medida em que dois corpos, não podendo ocupar simultaneamente o mesmo lugar no espaço, torna-se forçoso que os novos corpos, por se inserirem, desloquem os mais antigos da posição em que se encontram. Processo análogo, em sentido inverso, ocorre antes de algum corpo sair do veículo, porque também se depara com a necessidade de separar muitos e muitos outros até atingir a portatraseira e, em seguida, descer cada um dos degraus até retornar, na calçada, à condição de peça individual. Às vezes, há entradas e saídas não concomitantes mas, ainda quando sincrônicas, nos permitem rápidos vislumbres das desestruturações e reestruturações sucessivas no bloco imóvel ao olhar distraído. Estas reeestruturações e desestruturações instituem, no âmago do ônibus, aquilo a que chamamos movimento.

Algo distinto ocorre àqueles que não se parecem com amantes nem com amigos. Se se assemelham aos passageiros em pé dentro do veiculo, como não precisam entrar nem sair de veículo nenhum, conservam-se o mesmo bloco, aderidos e imóveis sempre, situação alterada apenas por uma força denatureza diversa que aparece e retira determinado ou determinados do local que ocupam, causando - como no ônibus - desequilíbrio nos imediatamente próximos. Não cabendo á tal força palavra passageiro, mas a nósimaginar que nome lhe dariam, se fossem aptos para fazê-lo, os que não se parecem com amantes nem com amigos, surge-nos a expressão "deus ex machina", aparição súbita e inexplicável em certas peças gregas, vinda com o objetivo de situações de total impasse pra seus personagens.

Deusa ex machina caminha pela calçada, seguido pela silhueta dos veículos, dos arranha-céus, das luzes de neón e da lua cheia. Caminha devagar, com um pacote contra o peito, como se estreitasse o amigo ou a amante, sabendo-se cronópio, degenerado e em extinção (1). Ei-lo que chega à casa, abre a porta e, mesmo antes de ir ao banheiro, desfaz o referido pacote, retira-lhe do interior objetos já pretéritos - ainda que seus fabricantes o queiram convencer da plena contemporaneidade dos mesmos (2) - e os vai colocando sobre seus pares em pé, estes companheiros de segredos ( como os amigos certos, os amantes raríssimos) cujos corpos, por não possuirem a flexibilidade dos que continuam seguindo no ônibus, já não admitem a inclusão, na vertical, de qualquer novo exemplar de sua espécie, por mais delgado que seja, o que confere aos objetos recém-chegados grande vantagem sobre os passageiros do veículo anteriormente referido visto que, se estes possuem a autonomia de entrar, de permanecer e de sair de tal veículo, por outro lado, só lhes é possível estarnele verticalmente ou alguns poucos, nos assentos. Nenhum pode deitar-se no teto. É verdade que acomodações deste último tipo já vem sendo utilizadas em trens do Central doBrasil, mas apenas por passageiros clandestinos e somente pleo teto pelo lado de fora - no que se refere ao seu usufruto, em ambas as variantes ( por fora e por dentro) , nos ônibus e trens do metrô, ainda não dispomos de estatísticas confiáveis. Voltando aos recém-chegados à casa que será, doravante, o seu verdadeiro lar, permanecem deitados sobre seus pares, como a Pátria no esplêndido berço... enquanto o Escriba grava, no disquete, uma das "Crônicas de Costumes da Cidade de São Paulo no final do século XX".

(1) - Os gêneros, por tradição, pertencem aos famas. Ambos, famas e cronópios, existem desde sempre, sendo que estes últimos devem seu nome ao escritor argentino Julio Cortázar. Os primeiros constituem a grande maioria: do segundos, perpetuamente ameaçados de extinção, restam bem poucos e esparsos, fato do qual os ecologistas espécie benéfica em florescimento no Planeta, ainda não se deram conta. (Nota do Autor).

(2) - Provavelmente, tal leitura apocalíptica seja equivocada, à semelhança do ocorrido quando da invenção da imprensa. ( Nota do Autor).

(3) - Esta crônicafoi encontrada em agosto de 1999, por funcionário doutorando em História Natural, no Setor de Achados e Perdidos do Metrô: por mero acaso, chegou às mãos de um dos organizadores desta Coletânea. ( Nota do Editor).

Zuleika dos Reis