A história do meu livro
Passei exatamente 32 preciosos anos da minha vida tentando desesperadamente me libertar da dependência química, alternando meses ou anos de completa sobriedade e ascensão social, com meses ou anos de embriaguez contumaz e sarjeta social, moral e espiritual. Isso se dava porque, não obstante ser participante do Programa de Recuperação de AA desde 1973, e desejar honestamente libertar-me da minha desgraça engarrafada, o meu desequilíbrio emocional me levava a periódicas recaídas, nas quais não só se desmoronava tudo de bom que a minha sobriedade anterior houvera construído como também aumentava o meu acervo de desatinos e a minha deplorável fama de bebedor-problema de alta periculosidade.
Como as más notícias se espalham com muito mais rapidez do que as boas, era evidente que todos sabiam do desqualificado indivíduo, mas raríssimos tinham conhecimento do homem que lutava com unhas e dentes para vencer o seu mal, até porque tinha dois filhos pequenos para criar!
Em 1999, recebi a minha última ficha amarela de reingresso em AA. E nunca mais ingeri uma gota sequer de bebida alcoólica. E em 2005, já aposentado como bancário e professor, detentor de um diploma de curso superior, casado com uma mulher de alma dócil e generosa, viajei para o Rio de Janeiro para reencontrar-me com o filho do meu primeiro casamento, que não via, desde quando, escorraçado pela mãe, tivera que deixá-lo, há quase 40 anos.
Quando voltei, resolvi escrever a minha autobiografia. O objetivo primordial do livro era contar a minha experiência no sofrimento e na recuperação da dependência, principalmente a alcoólica, eu, que houvera chegado ao Fundo do Poço e de lá conseguira voltar. Tanto que o nome do livro, escolhido desde cedo, é “Conseguindo a minha vida de volta”.
Eu nunca fora dado a choradeiras; sempre lúcido, apesar da tormentosa dependência química que me envolvia, sempre tivera a convicção que a minha vida era o que eu fizera dela. O problema não estava nos outros, mas em mim mesmo; as drogas e o álcool eram muletas morais de que eu me servira ante a minha incapacidade de aceitar a realidade que me cercava. Mas, foram tantos os atos de traição e vilania, desprezo e incompreensão de que fui alvo que, quando resolvi escrever o livro eu estava literalmente rangendo os dentes de raiva!
Na minha ressentida opinião, havia chegado o momento de declarar ao mundo que apesar dos prejuízos que causei para pessoas e instituições, das mentiras e atos desonestos de que eu fora capaz para manter a minha paixão pela garrafa, dos tormentos que ex-mulheres, filhos, familiares e amigos haviam sofrido por causa da minha incontinência de conduta alcoólica, na verdade, eu sempre fora um "santo" em estado de incubação! Esse "santo" agora iria revelar a quem interessar pudesse os "demônios" que o tinham perseguido!
Sedento do desejo de vingança, através das letras, terminei em novembro de 2005 o primeiro rascunho do livro. Deram 286 páginas!
O programa de AA e N/A, Grupos anônimos de auto-ajuda, dizem que ressentimentos são venenos que corroem a nossa alma lentamente e que devemos nos libertar deles se quisermos levar uma vida emocional mais equilibrada. Em 2005, sóbrio há 6 anos, membro ativo desses dois Grupos, ainda assim eu conservava ferozes ressentimentos, um deles contra a minha irmã Maria.
Tínhamos sido irmãos bem unidos, na infância e juventude, no Maranhão, e depois, na idade adulta, no Rio de Janeiro. Então me tornei viciado em anfetaminas, depois alcoólatra dos piores. Voltei para o Maranhão e aí, repito, passei anos aos trancos e barrancos, caindo e me levantando da dependência alcoólica. Em 1988, numa dessas recaídas, arranjei uma grande encrenca (o que era comum, pois quando me embriagava eu ficava literalmente louco) e precisava de dinheiro para livrar-me dela. Minha irmã, nessa época, era secretária bilingüe de uma multinacional americana; não vivia nadando em dinheiro, mas detinha uma boa situação econômico-financeira e já tinha me ajudado em outras oportunidades. Nossa mãe morava com ela, tinha 73 anos, problemas cardíacos e uma constante preocupação pela minha destrambelhada conduta moral e social, em virtude do meu alcoolismo. A encrenca dessa vez era muito mais séria do que as outras: ou arranjava dinheiro para contratar um bom advogado ou poderia enfrentar um processo. Era uma complicada situação, mas se eu não fosse, na época, um alcoólatra acovardado da vida e nem tivesse a má fama de useiro e vezeiro em usar de mentiras e artimanhas para conseguir dinheiro para a bebida, e a minha irmã fosse mais tolerante com as fraquezas alheias, talvez eu tivesse pedido ajuda diretamente para ela. Mas, sem coragem para isso, tentei obter a sua ajuda indiretamente: escrevi uma carta dramática para a minha mãe, solicitando a sua ajuda, para ela, coitada, que nem pensão tinha!
O tiro saiu pela culatra: minha mãe ficou abalada, sua pressão subiu perigosamente, e a minha irmã, por telefone, exprobrou duramente a minha conduta! Mais que dura, conseguiu ser cruel, pois para um irmão à beira do desespero, ela declarou que iria mudar o número do seu telefone residencial para que ele não incomodasse mais. Discutimos acaloradamente, mas, mesmo assim, ela afirmou que se fosse possível me mandaria o dinheiro. Como ele não veio, achei que tinha sido mesmo por má vontade sua. Um advogado, companheiro meu de AA, entrou em ação e, afinal, o processo foi evitado.
É claro que era uma situação de desespero e talvez a minha irmã tenha sido realmente cruel, mas a avaliação que hoje faço desse incidente é que ambos erramos: um, por covardia, outra, por falta de solidariedade fraterna. Contudo, estúpido e insensato, por fazer somente a leitura do fato de que a minha irmã se recusara a me ajudar no momento mais dramático da minha vida, passei a nutrir por ela um grande ressentimento. E os anos se passaram...
Na viagem que fiz ao Rio, em 2005, para resgatar social e espiritualmente o filho abandonado há quase 40 anos, eu sabia que a minha irmã Maria, juntamente com a outra irmã, a Tereza, moravam num condomínio no bairro do Humaitá. Mas não quis ir lá e justifiquei-me para a minha esposa Fernanda:
- Vão me olhar com medo, desconfiança, e não vou suportar isso!
Mas, voltando ao livro, graças a Deus, eu estava no Maranhão, lugar onde para você publicar um livro tem que ser famoso ou ter uma boa grana. Assim, o Arquivo Word do livro foi ficando no meu computador e de vez em quando eu o revia. E de 2005 até junho deste ano, quando finalmente ele foi publicado, eu o relia e fazia vários questionamentos. Por exemplo:
O livro não era para ajudar, relatando a minha experiência no sofrimento e na recuperação da dependência química? Então, por que falar mal de tanta gente viva ou morta? E, ainda por cima, mantendo os seus nomes reais?
Por que usar um livro – supostamente de auto-ajuda – para retaliar os meus algozes, vivos ou mortos?
Que valor moral ou espiritual teria aquele livro se servisse de constrangimento para os meus desafetos vivos ou seus descendentes, ou manchasse a memória dos que já tinham partido para a eternidade?
Que direito eu tinha de fazer a leitura de minha vida, sob a ótica de um mal amado, quando foram os meus expedientes desonestos de que me valera algumas vezes para obter recursos para manter períodos de bebedeiras sucessivas ou, ainda, minha vergonhosa conduta na embriaguez contumaz que me fizeram desacreditado pela maioria de parentes e amigos?
E, finalmente, por que eu me sentia no direito de julgar e condenar tanta gente se eu, somente eu, com a minha maldita compulsão alcoólica, fora o único responsável pelos maiores prejuízos que sofri? É certo que houve abandono, é certo que houve traição, é certo que houve incompreensão, calúnia e vilanias, mas nada disso travaria a minha ascensão social ou profissional se a minha vida não tivesse sido uma gangorra: por uns tempos, a inteligência me jogava lá para cima; por outros, o alcoolismo me atirava na sarjeta.
A cada questionamento, a cada reflexão, o livro ia diminuindo de tamanho. No fim, sobraram apenas 146 páginas! Tinha cortado a gordura do ressentimento, substituindo-a algumas vezes pelo chá verde do bom humor. E o livro ficou leve. Para leitura e para reflexão.
E em junho deste ano eu e a Fernanda voltamos ao Rio de Janeiro. Eu entrara em negociação com uma Editora no Rio para publicar, em regime de impressão por demanda, essa minha autobiografia. E eu queria receber os primeiros livros no próprio Rio de Janeiro para oferecê-los às pessoas que, naquela cidade, de um modo ou de outro, estiveram envolvidas com o meu passado.
Após 10 dias no Rio, eu já estava de posse de 50 exemplares inicialmente impressos e, munido de um exemplar, devidamente autografado para as minhas irmãs, dirigi-me com a Fernanda para o endereço da Maria e da Tereza, no Humaitá. Não as via há quase 30 anos e para mim houvera chegado o momento da minha reconciliação espiritual com a Maria. Era minha irmã, eu a amava, e tudo já havia passado. Tudo! Menos a nossa vida...
Mas recebemos a desoladora notícia: elas haviam mudado há mais de um ano, não deixando o novo endereço nem qualquer telefone para contato! Tinham deixado apenas uma pasta para que o porteiro arquivasse as correspondências que por acaso ainda fossem enviadas para esse endereço.
Então, eu houvera passado 3 anos preparando-me para uma nova oportunidade de voltar ao Rio, para reapresentar-me às irmãs e dar-lhes a boa notícia da minha completa recuperação da dependência química e, agora, não as encontrava mais! Mas, três dias antes de voltarmos para o Maranhão, Fernanda ponderou:
- Coloca esse exemplar na pasta que elas deixaram lá no condomínio. Hoje, amanhã ou daqui a anos, uma delas aparece. E encontrará o teu livro!
Voltamos para o condomínio no Humaitá e pedimos ao porteiro que guardasse aquele livro na pasta das antigas moradoras.
Num dia de julho, meu celular tocou, aqui no Maranhão. Uma voz feminina procurava por Antonio, o seu irmão, que deixara um livro para ela, em que havia uma mensagem de volta para a vida... Era a Maria!
Com emoção, o elo partido durante anos reatou-se! E a partir daí, conversamos e trocamos confidências todos os dias por telefone ou pelo MSN. Dos 6 meninos da Leonete, a minha mãe, somente três, Tereza, Maria e Antonio ainda estão vivos. Mas, na Ciranda da Vida, voltaram a entrelaçar as suas mãos e seus corações!
O amanhã não morre jamais...