Me chama de lagartixa

Antônio Cabral, um dos primeiros amigos que fiz no RL, quis saber se eu nunca levei um fora. Sua curiosidade inspirou esta crônica.

Nesta celeuma entre criacionistas e evolucionistas eu não meto o bedelho. Nem de Eva, nem do macaco: no que diz respeito a mim, descendo diretamente da lagartixa (e, por conseguinte, do dinossauro, de quem ela é a versão bonsai). São muitas as parecenças. Como lagartixa, não tenho o rabo preso e, muitas vezes, uso do mimetismo para passar desapercebida. Mas é no quesito amoroso que meu coração de DNA rabo-de-lagartixa se manifesta em plenitude: tantas vezes decepado quantas vezes auto-regenerado.

Férias na praia, primeiro namorado, ambos com 14 anos. Eu, uns 5 cm mais alta que ele. Em pleno estirão da puberdade, ele cresceu uns 15 cm enquanto namorávamos. Um dia, seca e inexplicavelmente, ele terminou o namoro e a lagartixa enfiou o primeiro rabo-cotó entre as pernas. Anos mais tarde, num encontro casual, P. revelou que quem tinha rompido comigo fora o irmão, gêmeo idêntico. Não perguntei o motivo: vai ver, eu não estava mais à altura deles.

Escola nova, eu com QI de ameba em Física. Tão péssima que a escola indicou um instrutor para acompanhar meus estudos. F., estudante de engenharia, fez o que pôde e acabou rolando uma química entre nós. Foram vários foras seqüenciais em que F. terminava comigo para namorar minha colega Nair. E vice-versa. Um dia, num lampejo de lucidez, Nair e eu fizemos um pacto de não aceitar mais tamanha indecisão. De herança, ficou a grande amizade entre as duas lagartixas cotós, que resiste até hoje.

Conheci R. numa festa no clube. Ele, estudante de Direito, já tinha a lábia dos catedráticos. Éramos completamente diferentes: ele, refinado, elegante, apegado ao material; eu, adepta do estilo simples, meio riponga, mais interessada no espiritual. O mimetismo da espécie ancestral fez-me adaptar ao seu estilo. Pena que R. não conseguia se adaptar ao estilo monogâmico. Foram anos de foras, seguidos de lágrimas de crocodilo de arrependimento. Eu subia pelas paredes, mas, acadêmica de Medicina, compreendia a força dos hormônios masculinos e sempre o aceitava de volta. Um dia, a gota dágua: rápida como uma lagartixa, deixei na lata de lixo do banheiro de um restaurante um pé de um sapato de grife dele (couro de crocodilo, claro!) e o restinho do meu amor. Ele saiu do local mancando. Meu coração, manco, enfim saltitava.

Na residência médica conheci outro R., urologista. Paixão arrebatadora, daquelas bem fulminantes. Eu estava nas nuvens. Ele estava há poucos meses do casamento. Me joga na parede, me chama de lagartixa, mas não faz isso comigo! Ele fez, sem coragem de romper com o compromisso assumido. E a lagartixa achou que ia morrer, que tinha usado a sua última regeneração do rabo-coração. Quando ele se separou e me procurou novamente, encontrou um coração sobrevivente, reconstituído e destinado a outro.

Foi como lagartixa profissional que conheci A., numa escola de idiomas. Eu, professora. Ele, meu aluno na turma dos sábados. Sou lagartixa, mas nunca tive sangue de barata: a primeira coisa que me chamou a atenção foi a reluzente aliança na mão direita dele. Definitivamente avessa a noivos, nem simpática eu conseguia ser. Um ano depois reencontrei Alexandre, casualmente, num jogo de tênis. Não havia mais aliança ofuscando a minha visão e as duas lagartixas reconheceram-se e casaram-se em poucos meses. Junto à lagartixa-mãe, uma nova linhagem de lagartixas adolescentes, de pedigree duplo, celebrou ontem, ao sol, o primeiro jubileu do patriarca.

Pois é, Antônio, pega leve: meu eu-lírico às vezes subleva e sai por aí, na fantasia, distribuindo todos os foras que meu eu-real levou. Só assim eu vou à forra: quem nasceu pra lagartixa nunca chega a jacaré.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 18/08/2008
Reeditado em 18/08/2008
Código do texto: T1134444
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