VOZES NA MADRUGADA

Pela janela, junto com a aragem fresca, chega o rumor de suas vozes. Uma delas monologa, interminável, com esta ou aquela irrupção de interlocutoras menos prolixas; outras irrrompem com alguma interjeição admirativa, ou contestatória, ou enfastiada. De repente, estão todas a falar ao mesmo tempo.

Motos passam, interrompendo, com violência, o fluxo das vozes secundadas pelos gritos do casal de gatos a fazer amor.

Desaparecidas as motos, a veemência dos gatos e das outras vozes vem repleta de indignação por tão ridículos apartes. Também para nós, boa parte da história que vinha sendo contada na língua desconhecida perdeu-se no ar, irremediavelmente.A voz inicial retoma a narração e os trechos perdidos pela platéia vão, aos poucos, se reintroduzindo, em fragmentos, fragmentos que nos permitem, se não retomarmos o fio da narrativa, pelo menos o seu clima original.

Essas vozes, acrescidas de outras e de outras e de outras, vão tecendo a madrugada, como os galos um a um vão tecem a manhã no poema de Cabral, enquanto nos quartos e em impotente silêncio, cada um de nós sente o impulso irracional de invadir cada um desses quintais e morder, e morder, e morder as vozes desses cães e do casal de gatos, essas vozes que não nos deixam dormir.

Texto-embrião do DESTESSITURA, crônica já publicada no RECANTO.