JOÃO CALVÁRIO

Era uma vez, numa pequena e muito distante cidade, um homem chamado João Calvário. Sua vida sempre foi cheia de dificuldades e de sofrimentos. O pai morreu de mordida de cobra quando ele tinha apenas seis anos, os irmãos que teve, morreram de morte morrida antes de conseguirem completar um ano de idade. Ainda lembrava do enterro de dois deles, mas foram quatro. Sua mãe, eterna viúva, era uma senhora bondosa, que dedicou toda a vida para o seu calvário, desculpem, para seu único filho. Ela fez de tudo para criá-lo na igreja evangélica que freqüentava, mas só conseguiu levá-lo até seus quatorze anos, época em que João descobriu que a igreja não era o seu lugar e que Deus não queria sua companhia.

Sei que isso pode parecer estranho para você, mas acredite, não o foi para João Calvário. Ele tomou a decisão de abandonar a igreja para ser coerente com a fé que tinha aprendido. Verdade é que, até aos quatorze anos, ele se tornara um assíduo membro da igreja, aluno da Escola Bíblica Dominical, estava sempre presente nos cultos de doutrina e gostava de estudar a Palavra de Deus junto com o seu pastor. Era comum ver João Calvário na casa do pastor lhe enchendo de perguntas e não saia dali sem que as mesmas fossem todas respondidas. Ele aprendeu que Deus, antes da fundação do mundo, havia preparado todos os nossos dias, escritos e determinados enquanto nenhum deles havia acontecido e que controlava minuciosamente todos os detalhes tanto da nossa vida como do universo inteiro. Nada era por acaso, tudo acontecia seguindo um roteiro previamente determinado por Deus. Assim, ele aprendeu que o Senhor houvera feito alguns seres humanos privilegiados com destino imutável para morar no céu e outros seres humanos de segunda categoria para o fogo eterno. Não pense que João Calvário abandonara a igreja por que não acreditava mais em Deus, ou por que discordava da bíblia, ou mesmo por ter práticas pecaminosas escondidas. Nada disso. Ele era um homem piedoso, de muita fé que amava a Deus e ao próximo. Também, na sua mente, não havia confusão doutrinaria. Ele tinha uma compreensão clara e aguda sobre tudo o que o seu pastor lhe ensinara. Refletia com sinceridade em tudo aquilo que lhe fora mostrado nas Escrituras.

Então por que João Calvário abandonou a igreja? Quer que eu seja mais claro? Então vai: Ele abandonou a igreja porque acreditava na predestinação (essa doutrina que ensina que Deus escolhera alguns para o céu e outros para o inferno) e estava convicto de que ele era um predestinado por Deus... mas para ir para o inferno.

Ninguém o convencia do contrario. Era essa a sua conclusão sobre sua relação com Deus. Mas calma, ele não andava bronqueado com o Senhor por causa disso. Não, muito pelo contrário, sua fé na soberania de Deus o fazia crer que isso era o melhor que poderia lhe acontecer, afinal foi o bondoso Deus que houvera decidido assim, então quem era ele para questionar? Já pensou, alguém questionar a vontade de Deus. Que absurdo!

_Mas irmão João tire esse pensamento da cabeça, você não é um predestinado para o inferno. Insistia o pastor e os demais membros da igreja.

_Olha gente, eu sei que vocês estão entre os escolhidos para desfrutar da Glória Celestial. Parabéns para vocês (batia palmas), mas eu sei que Deus me fez para assar na chapa quente do inferno. O meu futuro é de trevas, vou viver espetado pelo tridente de belzebu. Mas não se preocupem, isso faz parte da vida, uns são escolhidos e outros não, eu estou na parte ruim, foi Deus que quis assim, fazer o quê? Respondia com sincera tranqüilidade.

_ Ora, se vocês dizem – continuou – que um sinal dos escolhidos é estar na igreja, se sentir parte dela, eu vejo que isso não acontece comigo. Não me sinto bem nesse lugar religioso. Desculpem, mas eu cheguei à conclusão que não devo pisar mais os pés aqui. Vocês escolhidos estão transbordando de tanta alegria que não dá ver outra coisa, só vivem celebrando a cidadania celestial. Eu acho isso muito bonito, sério mesmo! Aqui é a casa de vocês e o céu de vocês. Que bonitinho vê-los de mãos levantadas cantando. São tantos abraços e beijos, é tudo maravilhoso. Porém eu é que tenho a cabeça fora dessas quatro paredes e estou mais ligado com os pecadores, não consigo viver longe deles. Definitivamente não consigo ter prazer em participar de suas festas, tenho uma sensação de ser um “estranho no ninho”. Certamente estou no ninho errado. Pertenço ao outro grupo e como as opções são apenas duas, só me resta o inferno, fazer o quê...?

Apesar de João Calvário crer que sua vida futura seria no inferno, pensava da seguinte forma: “Sei que não posso me livrar do inferno, é isso que eu mereço e é isso que Deus predeterminou para mim, dessa sina não posso me livrar jamais. Ora, um cara como eu que se sente deslocado dentro de uma igreja tão linda como a da minha mãe, jaz no inferno. Mas enquanto eu não faço a minha viagem para a eternidade de fogo será que eu posso me livrar de viver um inferno nessa vida presente? Por que não fazer dessa vida que está nas minhas mãos algo tão bom que pareça um céu? Um inferno já é ruim, mas dois infernos é demais”.

Ele cogitava a hipótese dos predestinados para o inferno poder viver um céu aqui na terra. Era sua única oportunidade de conhecer o lado bom da vida, já que no porvir o que lhe esperava era choro e ranger de dentes.

João Calvário não tinha uma idéia clara de como seria o céu, a morada de Deus, mas pensando sobre isso começou a acreditar que havia um céu no seu coração, pois amava as pessoas, tinha compaixão dos que sofria e definia felicidade como fazer bem aos outros. Então na esperança de experimentar uma espécie de céu terreno, João Calvário resolveu viver esse amor que encharcava o seu coração. “O céu deve ser amar” – pensou – e foi atrás desse céu. Tornou-se um defensor dos pobres. Criou uma ONG e começou a amparar os marginalizados. Lutava por comida, remédios, educação e, acima de tudo, dignidade. Seu amor pelos semelhantes era tão intenso que não tinha um nu que ele não se esforçasse para vesti-lo, não tinha um faminto que ele não se aquietasse enquanto não lhe desse de comer, não havia um moribundo que ele não visitasse e levasse uma palavra de conforto, não se encontrava nenhum sedento que ele não lhe conseguisse um pouco de água, não se conhecia alguém que apodrecesse no cárcere sem receber uma visitação amorosa do ex-crente, ex-evangélico, o “desviado” João Calvário.

Todas as noites, antes de dormir, retrospectava o seu dia tentando descobrir se tinha feito alguém feliz. Cada uma lembrança positiva lhe exultava dizendo: “isso é céu, isso é céu”.

Passados muitos anos, João Calvário estava no leito da morte. Sua esposa, filhos e netos ouviram seu ultimo discurso:

_ Queridos, eu sei que estou morrendo, tenho 84 anos e desde os 14 não entro em uma igreja e nem agora, na hora da minha morte, eu sinto vontade de ir para lá. Por favor, não levem o meu corpo para aquele lugar. Amo ardentemente o meu Deus e aceito Ele ter me feito mesmo predeterminado para ir para o inferno. Não quero lhe pedir para voltar atrás, isso seria impossível, além de abrir um precedente desastroso na teologia. Não. Eu aceito o meu destino. Meu amor por Deus não é para ir para o céu, eu o amo por que Ele me ama. Sinto isso. Meu amor por Deus é maior que o inferno. Sou grato a Deus por ter me deixado viver. Sou-lhe grato por ter me dado vocês, uma família maravilhosa. Sou-lhe grato por ter me proporcionado uma vida excelente. Eu não me preocupo com o inferno. Alias, pouco tempo tive para pensar sobre esse terrível lugar. Sou feliz porque conheci o céu. Não o céu que as pessoas da igreja vão, mas esse céu terreno. Vivi uma boa vida. Sei que do lado de fora desse hospital estão centenas de pessoas que gostariam de entrar aqui e me dar o último abraço. Isso é céu. Não se preocupem se vou sofrer no inferno. Quando eu estiver lá vou me lembrar do que vivi aqui e isso aliviará minha dor. Enquanto para os escolhidos o céu começa nesse momento para mim o céu termina aqui. Deus abençoe vocês.

Era uma vez, numa pequena e muito distante cidade, um homem chamado João Calvário.