Conversa para especialistas
CONVERSA PARA ESPECIALISTAS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 13.08.2008)
É uma pena que nos esteja vedada a melhor polêmica da semana - e que deve se prolongar ainda um pouquinho mais. A última dessas durou 21 anos, mas o mundo agora é outro e, neste caso, a História não tem como se repetir. Uma das características mais visíveis dessa mudança global reside nas comunicações: hoje, o celular e a Internet deixam o mundo menor e mais próximo, a despeito do que a China nos tem escancarado durante as atuais Olimpíadas, em Pequim. Ou seja: havendo uma vontade forte, o poder arbitrário (é atributo de todo poder tornar-se arbitrário se não encontrar freios às suas crescentes ambições) desliga celulares e filtra os sítios aos quais permitirá o acesso. Ou seja (de novo): trata-se do fenômeno conhecido como interatividade: você recebe informações por atacado e a granel mas também é controlado no atacado e no varejo com o bloqueio de páginas indesejáveis pelo poder e o seqüestro da sua capacidade de enviar e receber mensagens eletrônicas de texto ou de voz.
Mas a polêmica - por favor, não percamos o foco! - refere-se à questão das torturas ocorridas durante a ditadura militar brasileira (1964 a 1985), que se quer confundir com anistia. Pois parece que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas não sou o especialista que possa fazer tamanha afirmação com autoridade suficiente para ser levado em conta.
Na verdade, apenas queria entender um pouco o caso todo.
Vejamos: numa democracia, num regime de Direito (não confundir com um regime de direita), se eu não gosto de um governante eu discurso contra ele, eu faço campanha contra ele, eu voto contra ele, eu apelo à Justiça contra ele. Eu me beneficio da liberdade de imprensa, eu posso usar minha liberdade de expressão e de criação artística, eu tenho intacta minha liberdade de locomoção. Se eu for preso - para o que deverá existir ao menos uma acusação formal -, poderei me defender em várias instâncias legais, poderei contar com o "habeas corpus" e, se condenado, serei punido às claras com as penas previstas na lei. Num regime assim, direitos humanos são feitos para ser respeitados, integridade física existe para ser observada.
Era isso o que havia no Brasil até o dia 1o. de abril de 1964. De repente, a Constituição foi rasgada, o presidente foi deposto, o Congresso foi fechado, a imprensa foi censurada e todas as liberdades e direitos foram suprimidos. A isto se chama ditadura, uma violação bárbara exatamente da democracia e do estado de Direito. Ainda assim, as pessoas insistiam em se manifestar e, pensando remanescer um mínimo de ordem legal, teimavam em criticar o regime dos homens de verde que chegaram totalmente despreparados para a administração da coisa pública, pois apostavam numa longa guerra civil - e nem um só tiro foi disparado.
Os inconformados foram presos, banidos, torturados, expulsos do país ou, simplesmente, mortos. Torturados por agentes públicos numa ditadura que sempre fez questão de proclamar que aqui não havia tortura (porque tortura é vergonhoso, porque tortura é errado, porque tortura é crime). A muitos sobrou como opção - bloqueadas todas as possibilidades que uma democracia coloca ao alcance do cidadão - partir para a clandestinidade na luta pela democracia, pelo Direito, pelas liberdades e contra os golpistas que assaltaram o poder.
Agora, na hora de abrir os arquivos da repressão e discutir o que houve neste país, vêm nos dizer que o assunto é especializado e só aos grandes juristas é dado tratar do tema. Que a Lei da Anistia, editada pela própria ditadura em 1979, "perdoou" o crime de todos os torturadores. Por que o medo da discussão? E nós, nessa farta polêmica não poderemos meter o bico?
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela)