SÓ PARA ISSO, SÓ PARA TUDO, SÓ NOS INTERVALOS

Quando ouço alguém dizer que fulano nasceu só para isso, quase morro de inveja. Robert de Niro engordou quarenta quilos para fazer O TOURO INDOMÁVEL; Carlos Vereza odiava cigarros. Aprendeu a fumar quatro maços por dia para representar Graciliano Ramos na prisão, nos tempos do Estado Novo. São atores. Que mais poderiam ser?

Francisco de Assis conversava com os bichos. Sem poder tocá-los, chamava o Sol e a Lua de irmãos. Era santo, nada menos do que isso. Nada a fazer senão ser santo.

Dos navegadores portugueses Fernando Pessoa aprendeu o mote "navegar é preciso, viver não é preciso" (existem outras versões sobre os verdadeiros autores do referido mote, o que não vem ao caso no presente momento) e seguiu-lhes, à risca, a rota de navegações sem descanso, na linguagem. Era poeta. Nada a fazer senão ser poeta, e apenas isso. Se tivesse casado com a filha de sua lavadeira, ai, pobre dela, a filha da sua lavadeira!

Há, em contraponto, os que nasceram para tudo e se contentam com isso. Os antropófagos. Os opíparos. Dormem em todas as camas e corpos, provam dos mais incompatíveis manjares, lêem de best-sellers aos manuscritos mais secretos, escafandram em cada um dos mares e rios, trazem sempre no bolso não apenas as mais eficazes receitas para a cura de cada um dos males do mundo, como também para a cura dos males dos próximos mais próximos, além de portarem sempre algum isqueiro para eventuais e politicamente incorretos fumantes inveterados que lhe surjam pelo caminho.Nada a fazer senão ser múltiplo.

Há, por fim, os que só acontecem nos intervalos. Nos intervalos entre noticiários, crêem no Futuro. No brevíssimo intervalo entre dívidas, assimilam novas necessidades de consumo. No intervalo entre silêncios sem sentido escrevem poemas os quais, por um segundo, consideram perfeitos. No intervalo entre pânicos, ensaiam grandes gestos de coragem, que começarão a praticar na próxima segunda-feira. Nos intervalos do ceticismo absoluto, convencem os outros de verdades insofismáveis.Nos intervalos, arrumam as malas para partir, mas jamais partem.

Assim os que nasceram só para isso, os que nasceram só para tudo, os que só acontecem nos intervalos.Nada a dizer dos apenas grandes buracos negros.