Montevidéu, uma capital provinciana
Minha irmã e eu incluímos Montevidéu e Colônia de Sacramento no roteiro de viagem no último instante, por insistência de minha filha mais velha, recém vinda de uma excursão escolar que passou pelo Uruguai. Foi a melhor parte da viagem.
A capital tem jeito de cidade do interior. Abriga 1,4 milhão de almas ( como não se encantar por um povo cujo censo enumera o número de almas?!), quase metade da população do país. Arquitetura art nouveau, ônibus antiguinhos, ar retrô, carros velhos nas ruas, o pequeno número de semáforos ( que faz arriscada aventura da travessia pedestre na avenida da orla) e o ritmo lento dos habitantes remetem ao passado. Rapidamente, no entanto, aprende-se a ajustar o relógio e o olhar. E o enternecimento é inevitável.
Nem só de cassinos, antiguidades e tango vive o turismo local. Perguntei, tolamente, a um taxista, se Carlos Gardel era argentino ou francês. Para eles, a origem obscura do ícone do tango é límpida: nasceu em Tacuarembó, no interior do país. Ponto. São deles as melhores carnes e vinícolas do mundo. Ponto. São ainda os maiores consumidores mundiais de chá-mate. Ponto. Cópias da obra do artista plástico Torres García com o mapa da América Latina de ponta-cabeça, o Uruguai no topo, espalham-se pela cidade, em tradução fiel do ufanismo oriental, que é como preferem ser chamados os uruguaios. Então tá.
Montevidéu é cidade para ser percorrida a pé. O passeio há de desembocar no Mercado del Puerto, pólo gastronômico, de porções astronômicas inversamente proporcionais ao preço. Lá se degusta o Alfajor de Neve, a parrila ( churrasco assado nas lenhas), o dulce de leche e ótimos vinhos. Lá é marcante o ritual que se observa por toda parte: pessoas com garrafa térmica debaixo do braço, na mão um vaso com boquilha metalizada. É o chá-mate, de gosto amargo e forte para paladares pouco acostumados. No mercado também se percebe o alto grau de conscientização política: o assunto da vez é a disputa com a Argentina por causa das papeleras e os julgamentos de crimes da ditadura militar.
De tudo, o que mais encanta é o povo, com seu humor ácido e sarcástico, simples, gentil e MUITO educado. Mesmo quando as coisas fogem do previsto. Na cidade classificada entre as trinta mais seguras do mundo, minha companheira de viagem teve passaporte e dinheiro roubados, o que só foi percebido ao tentarmos retornar a Buenos Aires. Impedidas de deixar o país, cada uma tomou um rumo: minha irmã foi providenciar a emissão de novo documento no consulado brasileiro, enquanto eu retornava ao hotel que deixáramos há pouco com toda a bagagem. Como o hotel ficava na Pedonale, uma rua de pedestres sem acesso para veículos, o taxista estacionou o carro num local não permitido e se dispôs a levar os seis volumes de bagagem pesadíssima até o hotel, sem me deixar ajudá-lo. Anos de prática na rígida disciplina militar me deram o auto-controle exigido para não me apaixonar pelo homem bonito, submerso em malas, que tagarelava alegre e bem humorado. Foi bom não ter cedido ao ímpeto: minutos depois eu caía de amores pela recepcionista do hotel que me comunicou que talvez não vagasse apartamento até a tarde, mas eu poderia deixar a bagagem lá, e fosse aproveitar o dia, despreocupada. Ela me ajudaria a encontrar outro hotel e, se não houvesse acomodações - ela acrescentou candidamente -, poderíamos passar a noite no apartamento dela. Esse jeitinho provinciano, confiado, simples e gentil esteve presente em todos os contatos que fizemos. E os uruguaios parecem se orgulhar de suas maneiras: um dos principais jornais da capital, o El Pais, no último dia 8 trouxe reportagem de duas páginas discorrendo sobre como os assaltantes locais são gentis e educados. Os casos que ilustravam a matéria soariam hilários para um leitor desapercebido desse valor da cultura local.
Acabamos ficando por lá mais dois dias que o pretendido, até que o novo passaporte ficasse pronto. Foi perfeito, pois tivemos tempo de passear, ter mais contato com pessoas e fazer muitas compras ( não bastasse a valorização do real e o estado inicial de soerguimento da economia uruguaia, havia ainda as liquidações de fim de estação com preços incríveis nas outlets de grife).
É politicamente incorreto, eu sei, mas torço para que o país não reerga a sua economia muito rapidamente, para que ano que vem eu possa voltar lá, dessa vez com minhas filhas e em destino único. O Uruguai merece. Nós também.