Psicotrópicos
Pensamentos à base de morfina impedem que eu sinta meu corpo e roupas molhados. Aqui há uma sentença: todos nascidos para morrer. Muitas vezes uma morte lenta, silenciosa, como um câncer.
Vejo “os meninos” sentados, em plena madrugada, jogando dominó e bebendo cerveja. Batidas-gotas. Cada um desperdiça a própria vida como lhe convém. “São seres humanos que não deram certo enquanto seres humanos”.
Procuro doses sempre às madrugadas: abro um livro aqui, uma revista li; colho uma frase solta dita dentro de um ônibus; às vezes, fixo o olhar numa imagem.
Outro dia, vi dois cobertores se moverem alegremente no chão próximo a uma oficina de motos. Eram engraxates tentando serem apenas crianças.
A parede ao lado chora. É o filho da vizinha que às três horas da manhã também tenta ser criança. Nervosamente, mas tenta.
Pergunto o que esses fatos poderiam me ensinar. Talvez matéria para escrita. Talvez nada. Talvez impedimento, inércia.
O dilúvio lá fora permanece como nos relatos bíblicos: ira divina contra a humanidade insolente e pecadora. Gotas caem do teto e umedecem tudo. Livros se deterioram. O mofo toma as paredes e deságua no telhado. No entanto, os pensamentos impedem que eu sinta o corpo molhado.
Neste exato momento, milhares de famílias estejam desabrigadas pela chuva. Sucessões de fatos desastrosos ocorrem lá fora até o ponto de se ouvir gritos judiados vindos de Auschwitz. Dos seus matadouros químicos, chovia ácidos que molhavam a pele: não há como não sentir.
Porém, pensamentos continuam a me impermear. A escrita flui tal qual um rio ou a chuva que cai. “Quando você tem morfina, você não precisa de mais nada, meu caro”.