A décima noite


           Estou chegando da rua agora. É uma noite fria, a mais fria de todas estas noites. No céu, poucas estrelas. A lua, trêmula, seguiu meus passos vagarosamente. Aqui, o silêncio. Lá fora, a festa continua. Ao som da Banda Fuzuê, o forró corre solto. Pessoas dançam na rua. Jovens e velhos não resistem à animação que rola em nosso pequeno palco, que esquisitamente chamamos de coreto. Não é um coreto. É apenas a metade de um círculo de pedras, um elevado, onde nossos artistas se apresentam. Hoje está sendo a décima noite de nossa Quarta Mostra Cultural. Desta vez acho que encontramos o formato ideal. Doze noites de eventos apresentando o melhor da arte e diversidade cultural de nossa cidade. E duas manhãs, os domingos. Mas hoje pela manhã, São Pedro não colaborou: acordei com as águas rolando e os telefones tocando. Não teve jeito: tivemos que suspender a programação.

          Desci a rua, até chegar a minha casa,pensando em meu pai.Pensando em como seria bom se estivesse aqui.Certamente ele não perderia nenhum dos espetáculos. Meu pai foi músico e nunca compreendi porque deixou de ser. Tocava inúmeros instrumentos de sopro. Qualquer um que lhe dessem, dele era capaz de tirar melodias insuspeitas. Deixou-nos herança inestimável mas essa ele nos negou: somos todos de ouvidos moucos. Apesar disso amamos a música e toda e qualquer forma de arte. Por isso acho que ele ficaria orgulhoso de nosso trabalho, se estivesse aqui.

          A Mostra Cultural é realização do Departamento de Cultura de Lavras, órgão da Prefeitura Municipal. Dizem que sou a chefe desse departamento, mas na verdade não me sinto assim: somos uma equipe que trabalha unida, apenas isso. A produção da Mostra fica a cargo da D&A. O D é de meu irmão Dudu.Ele é o verdadeiro responsável pelo sucesso da Mostra. Na verdade o nome dele é Geraldo. Geraldo Melo, como meu pai. Nós o chamamos de Dudu em represália ao meu pai. Vejam só o que um grupo de fedelhos pode fazer: o nosso irmãozinho nasceu no mesmo dia do aniversário de meu pai: 21 de maio. Nós já tínhamos escolhido o nome, seria Eduardo. Quando descobrimos que o pai do menino havia mudado de idéia na última hora e lhe dado o próprio nome, foi um fuzuê danado. Não me lembro dos detalhes mas o caso é que Dudu ficou sendo o nome pelo qual ficaria conhecido por todos. Até por meu pai, que acabou se conformando com a pirraça das filhas.

          Mas, como eu ia dizendo, melhor, como eu ia escrevendo, hoje foi a décima noite. Faltam duas: amanhã metade da apresentação estará a cargo do Centro Musical SOARTE e a outra metade da cantora lírica Ana Cristina. Terça, a apoteose: a Banda Instrumental Show (BIS) fará todos dançarem ao som de músicas maravilhosas. Os mais velhos falarão de Glenn Miller. Eu as chamo de música de cinema. Fomos nós que lançamos esta Banda em 2005, na Primeira Mostra. Na época se chamava Big Band Gammon e era ligada ao Instituto Presbiteriano Gammon. Hoje ela não sabe bem o que é porque embora não tenha cortado o cordão umbilical sonha com vôos mais altos. Conforme se apresenta, usa um nome. 

        Parece Curitiba, eu ouvi, de passagem. O frio, a beleza de nossa Praça, a Igreja do Rosário que recentemente entregamos a população depois de restaurada, a nova pracinha construída em uma de suas laterais, duzentos e cinqüenta e quatro anos de História recuperados. E os eventos culturais que buscam o melhor da diversidade.Eu sempre desço a pé até minha casa, não é longe. E sempre desço pensando. Assim foi na noite em que ouvi esse elogio. Porque parecer com Curitiba é sempre um elogio. Nessa noite em questão eu vim pensando: quantos talentos nós temos, em todas as áreas, talentos que nunca serão descobertos, cujas vozes nunca atravessarão as barreiras de nossas montanhas! Elisa Meirelles, a jovem cuja voz alcança as estrelas e é translúcida como cristal; as Meninas Cantoras de Lavras, que formamos há menos de seis meses e que já conquistaram o respeito de todos. Ivan Segall, músico, compositor e cantor; Murilo Barbosa,Os amigos do Choro e todos os outros: dançarinos, cantores, atores, grupos folclóricos, bandas militares. Ah, sim, tivemos de tudo na Praça: fanfarras escolares, seresteiros,bateria de escola de samba, corais, grupos instrumentais e até Feira de Livros. As três maiores livrarias da cidade vão para a Praça vender seus livros. Temos também um sebo e duas barracas temáticas: A dos Espíritas e a da Fundação Logosófica.

          Talvez este seja o último ano em que estou à frente deste evento. Talvez seja o último ano que este evento aconteça. Eu espero que não, a Mostra já é um acontecimento que pegou.Ela não precisa mais de mim,nem de meus sonhos. Falam sobre ela.Elogiam. Perguntam: ano que vem terá mais? Eu não sei. Tudo depende do resultado das próximas eleições municipais. Fazemos parte de um país onde não existe continuidade. Talvez por isso continuamos a ser o país do futuro. Estamos sempre querendo passá-lo a limpo. O que o governante anterior fez nunca é bom, sempre é preciso mudar. Por isso o presente claudica. Manca. Tenho esperanças porém. Verde é minha cor favorita.

        Problemas? Sim, nós tivemos muitos problemas para colocá-la em funcionamento nesses quatro anos. Nenhum que não fosse resolvido. Mas, que graça tem a vida sem problemas? Seria muito chato se tudo acontecesse sem desafios.É o obstáculo que nos faz querer superá-lo. E é a superação de si mesmo e dos problemas que encontramos pelo caminho que gera a evolução.Só estamos onde estamos porque os que vieram antes de nós prepararam o caminho.Foi o passado que gerou o presente. E um dia haverá um presente que foi gerado por nós.