O CAUSO DO BURRO

Galdino era vaqueiro esperto, conhecido como um dos melhores nas circunvizinhanças da pequena vila do Limoeiro, no sertão da Bahia. Acostumado na lida, corria diariamente atrás de reses tinhosas na caatinga. Volta e meia voltava com a indumentária de couro cortido, todo cheio de espinhos, desses que faz um estrago daqueles na pele. Mas, o experiente homem também fazia das suas. Gostava da “branquinha”, da “marvada”, da “água que boi não bebe”, da popular cachaça. Metido à besta, vez em quando dava de valente e muito mal educado, cuspia no chão as sobras do santo.

A vila estava uma alegria só, era festa do padroeiro, o glorioso São Sebastião. De longe se avistavam as bandeirolas coloridas, as barraquinhas de bambu e palha e, toda sorte de cartazes com o motivo do festejo. A multidão feliz acompanhava a procissão do Padre João. Rezadeiras entoavam ladainhas que eram seguidamente repetidas pelos demais fiéis. Uma festança, com direito a foguetório e uma banda de três: Setembrino no saxofone, José Marreta no trombone e Dilson Azulão no tarol. Uma desafinação que só!

Cambaleante, o nosso vaqueiro Galdino acompanhava a procissão, vez em quando resmungava prá mulher coisas sem sentido. Tudo porque a mulher, na condição de primeira secretária da Irmandade dos Devotos de São Sebastião, não tolerava os constantes vexames do pobre.

___ Muié, me deixa em paz. Num tá vendo que tô bem! Hoje só tomei quatro de um quarto. Oxente, pegue no meu pé, não?...

___Tô vendo, homi. Essa maldita caninha ainda vai te matá, dá prá converter, passa da hora.

___Deixa de cisma, muié! Larga mão de ser besta!

A mulher de Galdino já não suportava mais tanto desfrute e rompeu para o lado do Padre João, talvez querendo achar proteção, se juntando às rezadeiras no coro frenético à frente.

A procissão teve o seu progresso, passando por duas ou três ruas e becos da pequena vila, terminando em frente à Igreja de São Sebastião. Padre João subiu as escadarias e soltou seu vozeirão.

___Meus fiéis estou muito feliz esse ano. Consegui com o Coronel Desidério telhas novas prá nossa igrejinha, do Coronel Afonso, a tinta prá cobrir as paredes e ajuda dos dizimistas prá terminar essa grande obra na Casa do Senhor. Por outro lado, meus devotos, se faz interessante estarmos com as faces voltadas para Deus e nos redimirmos antes que seja tarde! Àqueles que ainda não se converteram ainda é tempo, hoje tem confessionário. São Sebastião só ajuda quem quer, quem não quer irá arder nas chamas do inferno. Convido a todos para irmos prá dentro da igreja, pretendo celebrar uma missa bonita. Mas, antes disso um viva a São Sebastião!

Ouviam-se palavras de ordem, aplausos e conversas de pé de ouvido e aquele foguetório tão comum nesse tipo de evento.

___Viva, São Sebastião! Viva! Viva! Viva!...

O padre seguiu na frente acompanhado do Zé Abobrinha, seu sacristão e fiel ajudante e, da multidão de fiéis que corriam desesperadamente à procura de um assento nos poucos bancos de pau de jacarandá, doados pelo Coronel Filomeno há quase duas décadas.

Fez-se um silêncio geral e o padre iniciou a celebração...

___Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!...

Nisso, o vaqueiro Galdino, com a celebração em curso, já alto e em pé num canto da igreja, iniciou uma conversa com o compadre Zeca de Lourdinha. O assunto era a compra de um burro de oito anos por Galdino nas mãos de Zuleika de Aramis.

___Apois é cumpadi Zeca. Cumprei um burro danado de bom nas mãos de Zuleika de Aramis. O bicho tá bunito dimais, o pêlo mais parece fi di seda di tão fino, êta burro bom, tô satisfeitio...

Galdino soltava a voz com tanto furor que a multidão concentrada na missa e, por um instante dirigiu-lhe o olhar conjunto em tom de reprovação, já que ali não era lugar para tal conversa. Mas, Galdino, homem em “que não se colocava sela”, continuou o assunto e passou a falar dessa vez mais alto.

___Cumpadi Zeca, vosmecê sabe que não dô murro em ponta de faca. Cumprei o burro e num preço bom dimais...

Zeca de Lourdinha, homem cismado, muito direito e bem casado, já estava muito preocupado, pois os olhares da mulher já davam cabo que o melhor estaria por vir e, emendou:

___Cumpadi Galdino, num sei se era mió nois conversá lá fora, o povo já tá espiano dimais a genti...

___Que o quê, cumpadi! Tamo fazeno nada dimais. Oxente!

O padre João não se continha com o diálogo efusivo entre os dois e, parou a missa. Num tom autoritário de homem de Deus e com os punhos cerrados, esbravejou:

___Mas, vejam só! Galdino e Zeca de Lourdinha resolveram negociar seus burros em minha igreja e durante a missa. Isso é um absurdo! Respeitem a Casa de Deus! Homens de...

O Padre João nem conseguiu terminar o que falava, quando Galdino num “fogo de bêbado” sem igual, retrucou:

___Oia seu Padre, nois num tamo fazeno nada dimais, viu? Adimais o sinhô cuida aí da sua missa e deixe nois aqui com nossos burro, tenha santa paciência, homi!

E mesmo com o chamamento do Padre continuou a falar do burro que tinha comprado e agora com muito mais intensidade, sem ao menos se preocupar com o ocorrido.

Pirapora/MG, 10 de agosto de 2008.