Cadeados e fadas "magrinhas"
Qual a conexão entre cadeados e fadas "magrinhas"? Ou corcundas?
Uma discussão para além de meramente televisiva, mais próxima de discussões filosóficas em pleno Conic, no seio mais alentado do submundo braziliense.
A penúltima vez que estive no antro mencionado foi num barzinho em frente a um teatro onde se faz shows pornô. Ao vivo! Calma, eu nunca assisti a nenhum deles. Mas o tal antro me atrai nas noites em que saio de minha cela no clausto familiar e doméstico para me aventurar em viagens de pausa e irresponsabilidade. Já que não acalento mais os sonhos apostólicos de conversão dos pecadores, isso os protestantes heróicos do Conic já procuram fazer com a compra de cinemas e outros espaços. Mas não conseguiram derrubar o "tradicional" Cine Ritz, que continua a perverter eroticamente as noites brazilienses, já tão pervertidas institucionalmente.
Há um boteco bem em frente ao Ritz onde estive com um amigo escritor, pois no Conic não se anda desacompanhada, a não ser que se deseje algum programa ou michê, que os meus cabelos brancos não favorecem. Quando lá estive, ao ir ao banheiro para minhas muito humanas e sociologicamente transcendentais necessidades fisiológicas, percebi que o cadeado era soldado em uma corrente. Nem os cadeados escapam da avidez aquisitiva de drogas dos habitués noturnos. Eu, perplexa, concluí.
Dessa vez o bar era uma sinuca ampla. Mais próspera e cadeado livre de soldas. Um travesti de meia dentadura me ofereceu a chave. E certamente ele não escapou da batida da Polícia Militar. E mais certamente ainda estava eu bem acompanhada de um professor cujo único defeito é ter sido, com fui, da militância de esquerda, da qual estou recuperada em contraste com a derivação anarquista do ilustre Mestre. Ele se apressou em, tendo pedido permissão, indagar um dos policiais militares se havia alguma mulher para me fazer a revista. Uma senha reconhecidamente fundamentada na Lei que me valeu ser dispensada dos apalpos policiais em minuciosa busca de trouxas a serem, quando a coisa é séria, enviadas para exame toxicológico. Enquanto as apalpadelas rolavam frouxas, uma moça de vida nem tão definida gritava e resistia ao assédio da autoridade, com o resultado de ter o braço quase destroncado numa luta corporal com o soldado militar. Eu permaneci quieta, mirando tudo com o escrutínio típico dos advogados e na real absolutamente inquieta. Enquanto isso o recém chegado aderente ao meu convívio e do acompanhante dizia relaxa, relaxa... um rapaz sensível sem dúvida, ele percebia claramente o revolver inclemente de minhas vísceras em disparada.
Alíviada pela dispensa da revista fui inquirida a respeito de uma bolsa sobre um banco. No ato disse "é minha. Inclusive, autoridade, é bom mesmo recolhê-la já que está aberta e não se sabe o que pode ser plantado lá dentro." O soldado que não consegui identificar concedeu; resgatei minha bolsa e a abri, dizendo que estivesse totalmente à vontade para revistá-la. Inclusive, acrescentei, tenho aqui meus documentos e lhe dei uma carteirada da Ordem dos Advogados do DF. O sujeito ficou na dele. Quando a revista foi concluída chegou respeitosamente e me perguntou se eu sabia onde estava. Eu lhe disse que certamente estava aonde o povo está - o que segundo Milton é onde todo artista deve estar - e que ele também fazia parte desse povo inspirador que é nosso heróico otário de sempre - não exatamente nesses termos, em outros um tanto mais formais. Não sei se ele entendeu, mas advertiu que ali é um ponto de drogas. É sim, onde uma mulher auto-denominada Márcia estava a vender drogas para suprir as necessidades de uma filha que teve na cadeia. Mas eu não tinha mais tempo ou alento para dar explicações.
O ar, que até então podia ser cortado a faca de tão denso, foi serenando. Aí o papo com nosso recém agregado foi tomando corpo.
Papo insólito. Sobre o conceito de miltante houve uma divergência. O agregado emitia o conceito de que militante era uma fada, uma fada "magrinha", já que não seria certamente um fada madrinha, mais afim com matrona, visto que com asas tão leves, confeccionadas com tecidos sintéticos lá de Milão, não poderia certamente alçar vôo. Assim que tratava-se de uma fada certamente magérrima, mais que as que modelam de Milão a Tóquio, e acrescentou, corcunda, para poder alçar vôo com asas sustentadas no arco funcional do desvio de coluna.
Em vão foram emitidos discursos de ateu comuna, de militância de esquerda, de ditadura e sórdidas torturas. Ele teimava em que as tais asas de fada, ainda que salpicadas de paeté em penas autênticas de avestruz ou ema, eram a causa primeira e última dos delírios militantes ou militontos, no caso de algum desvio de vôo devido ao alto teor etílico. E teimava em dissecar a realidade das coincidências infalíveis para encontrar o pulso ululante de Deus agindo no cotidiano dos anônimos e pobres, inclusive medianos.
E assim que, entre fadas e cadeados, meu deleite é um vôo, que seja à direita ou ao Norte, essa heresia ideológica, pelas Asas do Plano Piloto, cujo centro visceral ainda é o Conic e sua fauna do baixo mundo.
Quem sabe da próxima vez, quando me disponha a ir, apesar de todas as improbabilidades, a um encontro social no alto escalão palaciano, venha a me deparar com algum cadeado salpicado em ouro os diamantes, demente e frouxo para ser confiscado informalmente por algum figurão da política nacional... Acredito que seria muito enfadonho. Afinal, será que lá eu encontraria uma fada "padrinho" ou preferencialmente "magrinha" que me inspirasse uma crônica versando sobre as discrepâncias conceituais - limitadamente conceituais - entre o grand monde mesquinhamente livre das abordagens policiais e o baixo mundo em que as violências e grosserias oficiais prosperam.
O fato é que a tal voz do povo, divinamente legitimada, sussurou, quando já de saída estávamos, que a tal moça de vida indefinida e disposição para escândalos e gritarias, que fora levada pelos policiais, já estava liberada depois de uma provável curra. Voz do povo, voz de pranto, indignação de Deus.