É um, é dois. É um, dois, três.
Sempre gostei de dançar, desde que era criança. Na época, achava lindo o fato das pessoas se aproximarem, entrelaçarem as mãos e se movimentarem de forma tão harmônica, tão precisa, como se dois corpos pudessem ocupar o mesmo espaço. Gostava da união, do jogo de dois, das parcerias. Aprendi a dançar com meus pais, que aprenderam com os seus.
Certa vez, mamãe me contou como eram os antigos forrós que o vovô, pai de papai, organizava na casa grande da sua pequena propriedade: um sítio, localizado na Barra do Banabuiú, distrito de Limoeiro do Norte, quando ela ainda era uma mocinha. Segundo ela, eram festas esperadas, que atraíam grande parte da população rural residente naquela redondeza. Só havia uma recomendação por parte de meu avô aos participantes: todos os homens deveriam entregar suas peixeiras logo na entrada aos meus dois tios (ainda rapazotes), que as guardavam numa bacia de ágata em baixo da cama do seu velho pai.
Três homens varavam a madrugando tocando – um na sanfona, um no zabumba, outro no triângulo - e no chiado do chinelo, à luz da lamparina, o povo todo dançava a noite inteirinha bem ao estilo da cultura popular nordestina. Era uma diversão organizada pela e para família, pois irmão dançava com irmã, pai com filha, vizinho com vizinha, afinal, como diz uma amiga minha: “O forró é democrático, tem espaço pra todo mundo”...
- E o papai dançava com a senhora, mamãe? Perguntei da primeira vez dentre as tantas em que ela me contou essa história.
- Quem, seu pai? Dançava nada, ele era tímido, ficava sentado no parapeito da janela, só reparando nos outros dançarem. A gente nem namorava nesse tempo, depois é que eu ensinei ele a dançar. Respondeu com um sorrisinho no canto da boca e um ar de superioridade.
O certo é que o arrasta pé era motivo para as pessoas se encontrarem (e reencontrarem), para conversarem, para conviverem e se tornarem mais íntimas a partir da diversão, da dança, do bate-papo. Era lá que os cabras machos e as mulheres daquele pedaço do sertão limoeirense tinham um momento de distração, deixavam suas dificuldades e tristezas pra trás e aproveitavam o forrozão truando até dizer chega!
A vida, assim como a dança, exige companhia, porque é também um movimento, um movimento social. Ser humano, assim, é estar apto e com disposição para estar com o outro, desfrutar de sua presença, com todas as implicações, boas e más, que isso possa trazer. Negar nossa necessidade de socialização, de afeto e de amor, nesse sentido, implica solidão. Nas palavras do poeta Vinícius de Moraes: “A pior solidão é do ser que não ama”.
Fico pensando nos dias de hoje, em que o ser perdeu lugar para o ter. Em que as pessoas valem mais pelo que produzem do que pelo que realmente pensam ou são. Um tempo em que o capital, puro e simples, rege as relações humanas e em que a tirania da economia de mercado esmaga multidões de miseráveis, as quais passaram a ser consideradas apenas números e estatísticas do cenário mundial.
Este é o tempo da revolução tecnológica, das mudanças repentinas e, por incrível que pareça, das incongruências: nunca tivemos tanto acesso à comunicação e estivemos tão distantes uns dos outros. Em nenhum momento da História as relações humanas foram tão superficiais, com salas de bate-papos virtuais cheias de pessoas que não conversam com quem está ao lado, ônibus lotados de trabalhadores que não se cumprimentam mais, que sequer se olham. Os olhares, aliás, andam perdidos. Os grandes centros estão repletos de pessoas distantes e solitárias. Não há mais apertos de mãos, crianças brincando pelas ruas e, muito menos, velhinhos conversando ao cair da tarde nas calçadas.
O medo nos cegou. Ele nos trancou dentro de nós mesmos e, temo, jogou a chave fora. Temos medo da violência, por isso é que nos trancamos, medo de que os outros descubram nossos defeitos, por isso é que nos fechamos, medo de sermos nós mesmos e perdermos nossas máscaras de sucesso e vida bem-sucedida, por isso é que nos calamos. Seria bom se, assim como no forró da casa do meu avô, nós deixássemos nossas armas na “entrada”, se nós as abandonássemos e nos colocássemos numa posição de liberdade para sermos humanos, limitados, porém, sociáveis e dispostos a conviver e a “concriar” a vida.
Meu avô morreu antes de eu nascer, por isso, não tive o privilégio de conhecê-lo e, até onde eu sei, ele não deixou uma herança de riquezas, a não ser umas poucas terrinhas e umas cabecinhas de gado, que logo tiveram de ser vendidas. Mas aprendi muito com ele, pelo que deixou de mais legítimo: um legado de alegria, porque fez, durante toda a sua vida, um compromisso com o bem-estar de si e dos outros. Fez um pacto com a vida e com as possibilidades de aprendizagem (de acertos e de erros) que somente a convivência e o afeto podem proporcionar.
IZABEL MAIA.