Pra além do Irã

Em uma época de solidão abissal encravada no seio de um dos últimos andares de um arranha-céu; em que se faz (acredito, questão de fazer) de seis quartos (ou mais) um verdadeiro complexo de universos paralelos dentro de um único lar (ou em que simplesmente pais e filhos que, morando juntos, se tratam feito inquilinos); em que se discute com o rádio ou apresentadores de Tv; uma época fria (em que tudo e todos correm...) de impassíveis rostos com óculos escuros e de mp3 nos ouvidos pelos calçadões e calçadas da vida; em que morreram o diálogo e a confiança; em que amizades são raras e o corpo em academias e baladas fala mais alto (tantas vezes sem querer saber nome e procedência)...

Em uma época assim, por que não deixar como herança uma grande quantia em dinheiro a um bichinho, que tem a infelicidade de sentir a ausência do seu dono?

Porque se estabelece entre os dois uma autêntica relação de (assexuado?) amor. Um filho ou uma netinha querida que pede para dar o pé, faz carinho ou às vezes dá a ração quando está perto, não substitui em momento algum o dono que de longe, ao telefone, aponta para o prato vazio.

Mas e se essa pessoa não tiver filhos ou amigos?

Foi daí que se deu o estalo de um quase roteiro!

O enredo (praticamente todo) surgiu de quando vi de relance o caso de uma gorda herança ter sido deixada a um cãozinho de estimação.

Nem preciso dizer que a maioria das pessoas entrevistadas achou um absurdo. Já eu, não. Pois mesmo que tivesse filhos, irmãos ou netos quem redigiu o testamento, isto realça apenas o quão sozinho era!

E de fato, não procurei acercar-me da história real, porque me concedeu um bom enredo imaginar alguém, já de idade avançada, rico, extremamente rico, doente e carcomido pelos olhares de viva ganância de uma imensa família de chacais, à desesperada procura de um ser que se afeiçoe a um cachorro novo, porém com rabugens, que, sincero e não-dissimulado como quase todos os bichos, creio ( - Como pode se ver, minha Biologia não vai longe!) desfez o pedregulho que era o que existe em seu peito; a ponto de defender este ser humano (homem, mulher ou hermafrodita) por puro afeto, sem pedir em troca um centavo do seu bolso!

E quem ele(a) encontra? Uma criança? Um órfão? Não! Claro que não! Seria óbvio demais!

Portanto, uma mulher, de aproximadamente trinta e sete anos, separada, sem filhos (porque perdeu o seu único no parto), funcionária de um pequeno estabelecimento, só e desiludida. Ou seja, uma outra vida despedaçada.

Mas agora, surge outra pergunta: O vulto milionário em sua peregrinação da cidade ao campo, onde não deve ser (re)conhecido, após finalmente fazer amizade com essa alma sofrida, sentir-se-á pequeno ou tão mesquinho quanto os seus em dizer que o fez pelo cachorro e que ela, caso cuide bem dele, poderá também usufruir de boa parte da herança?

Bases tão frágeis essas.

Mas clichê ou não, é impressionante como logo pensei (de uma forma fixa até) em usar como cenário a tão exuberante e sempre exótica Índia (de vacas sagradas no meio da rua e mil rostos pintados com as mais variadas cores).

É, talvez pelos passos de Buda ou só para entrever como o entrelaçar de três criaturas (tal qual folhas pisadas a um chá) pode enfim cicatrizar uma.

a 18/06/08