Os coronéis se mudam para o Rio
OS CORONÉIS SE MUDAM PARA O RIO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 06.08.2008)
Antes de mais nada, tentemos chegar a um acordo: eleições livres têm que ser livres para o eleitor, jamais para o candidato - especialmente quando muitos dos nossos "representantes" cada vez mais se aproximam das margens da Lei. E até as ultrapassam. Ou seja: cada vez mais se tornam abertamente marginais, muitos e muitos deles.
No humilde entender deste modesto escriba, o fundamental é a liberdade de escolha, e não a liberdade de imposição de candidaturas por artifícios imorais, ainda que legais, e muito menos por manobras escusas (leia-se dinheiro: lícito ou ilícito, tanto faz) que visam a manutenção de interesses inconfessáveis e a defesa de privilégios de grupos ou pessoas.
Invocar direitos fundamentais e liberdade de ir-e-vir para impor candidatos que já meteram a mão, direta ou indiretamente, no dinheiro público, ou que ali estão exatamente para fazer isso, ou que dão ou darão cobertura a governantes inescrupulosos, ou que já têm ficha sabidamente suja e buscam apenas (além de mais dinheiro e muito poder) safar-se da Justiça através de expedientes como foros privilegiados, parece que não é nada diferente de clamar pelos meus direitos mais inalienáveis para que eu possa cometer os meus crimes com absoluta liberdade, depois de avisar com todas as letras que vou cometê-los; para que eu possa matar sem ser impedido; para que eu possa beber à vontade e sair dirigindo.
A questão se torna ainda mais grave pela impunidade generalizada que reina por aí (por aqui). Se eu assassinar, certamente irei preso. Mas se eu roubar direitinho, matando pessoas por tabela, e, de preferência, se eu roubar valores muito altos no exercício de mandatos públicos, nada me acontecerá, pois terei uma rede de relacionamentos - todos amarrados em todos, o balde de siris - com um amplo interesse em safar a minha pele para safar a pele de todos: se um for para a panela fervente, todos, solidários, igualmente acabam no caldeirão.
Deixa de haver democracia, a expressão mais legítima da vontade do povo, quando a eleição é manipulada por quem quer que seja.
Na República Velha proliferaram os coronéis, gente de dinheiro e muitas terras, sucessores dos barões do Império, que compravam a patente da Guarda Nacional para poderem tranqüilamente (e "legalmente") armar o seu bando e manter a ferro e fogo o domínio de terras e de gentes, procedimento avalizado por eleições "democráticas" - embora viciadas, com o controle rígido dos currais eleitorais, dos feudos particulares inexpugnáveis.
Essa nuvem coronelícia foi sendo afastada aos poucos, jogada para as periferias: as periferias "de fora", como o Nordeste, e as "de dentro", como as cidades menores do interior. A "revolução redentora" de 1964 trocou os antigos coronéis de araque por oficiais de estrelas nos ombros. E, então, ou simplesmente não havia mais eleição, ou havia nomeação (de prefeitos, governadores, ditadores e até de senadores), ou eleição indireta, ou eleição manipulada.
Agora - tempos modernos! século 21! a era de Aquarius! - os currais se incrustam no Rio de Janeiro no mesmo figurino do começo dos anos 1900: de um lado os traficantes, de outro as milícias, de um terceiro as "agremiações" de bandidos, riquíssimos todos eles, apóiam cada vez mais abertamente os seus próprios candidatos para melhor manter e ampliar as suas conquistas e o seu poder. Tão abertamente, aliás, que têm até se dado ao luxo de dispensar intermediários: agora, seus próprios membros é que são "democraticamente" eleitos.
E o Rio é hoje, estamos cansados de saber, o que seremos nós amanhã de manhã.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Dança de Fantasmas (contos de amor)", contos)