PEIXE CRU, CIGARRO E PERNILONGO!
A família de coreanos participaria de um encontro nacional dos seus compatriotas em Angra dos Reis. Para isso, precisaria sair de Piracicaba, interior de São Paulo, no dia anterior. Justo na semana que antecedeu a viagem, o coreano Roh Woon Li sofreu uma súbita interrupção do fluido sangüíneo, no nervo ótico, na parte de trás do globo ocular. Aquele mesmo que leva os sinais visuais para o cérebro, popularmente conhecido como derrame ocular.
O resultado, desse mal súbito fica por conta das células nervosas. Elas sofrem danos e a visão no olho afetado pode ser perdida parcial ou totalmente. Portanto, o convescote iria por “água a baixo”. Foi então, que Ana Woon Li, pediu ao marido para convidar o padrinho de uma das suas seis filhas, para ir dirigindo a “Chevrolet_ Veraneio” do casal.
A perua de 1989 estava impecável, ainda tinha a cor verde pintada, com as cores do exército brasileiro. Ela havia sido incorporada á família de coreanos, graças a um vizinho falecido. A família do morto não suportava mais conviver com essa lembrança do finado coronel. A Veraneio era da versão: D-10, combustível: diesel, direção: hidráulica, 4 portas, motor: turbo diesel, câmbio: mecânico, o estofamento de tecido.
Enfim, no dia estipulado para a saída à Angra dos Reis, a “perua”, além da família coreana levava também o motorista Juvenal, a sua esposa, o seu filhinho e toda uma sorte de parafernálias , alimentos, malas e tralhas para pescaria das duas famílias.
As paradas eram obrigatórias. Sempre havia uma criança chorando ou querendo ir ao banheiro, ou abrindo um berreiro de fome. A sorte de todos ficou por conta da direção tranqüila e da paciência do Juvenal.
Após uma longa jornada puderam avistar muita natureza, e, um cenário de tirar o fôlego. São 365 ilhas e mais de 2000 praias de beleza imensurável.
A praia escolhida para o encontro dos coreanos ficava a mais ou menos três quilometros do centro da cidade, entre a Mata Atlântica e o mar de águas limpas, formando uma imensa piscina natural. Cada família ficou alojada em pequenos chalés.
Algumas das crianças na última parada haviam se vestido com roupas de banho, e, com isso na chegada, correram em alvoroço ao encontro das ondas, deixando os pais desnorteados e preocupados. Enquanto, Roh Woon e Juvenal acertavam o detalhe da transferência das malas e tudo o mais, as mulheres estavam atentas olhando as crianças no banho de mar.
No dia seguinte, a manhã começou com, o “in’as”, a tal da reverência feita com a inclinação da cabeça e do corpo. Pois, assim como no Japão, os coreanos não costumam cumprimentar-se com apertos de mão.
Já no café da manhã, foi servido um tal de kimchi, um prato feito de acelgas refogadas salpicado de muita pimenta vermelha. Ana Woon Li explicou para Juvenal e Carla, pois os coreanos preservam muito a tradição na culinária e certamente, em uma mesa coreana não podem faltar três cores: o branco, geralmente representado pelo arroz; o vermelho, marcado pelo exagero da pimenta; e o verde, sempre presente nas verduras. A ancestral receita do kimchi simboliza o gosto peculiar por alho – dizem que os coreanos até exalam alho.
O almoço, após a pesca submarina dos coreanos foi recheado de “hoe” ou peixes crus fatiado, mas que leva no lugar do wasabi (raiz-forte) uma forte mistura de pasta de pimenta temperada. Tinha também o ramyeon, o tradicional lámen coreano; o twigim, uma espécie de tempurá de legumes que é muito popular, em toda a Coréia; e, finalmente, o gimbap que é o favorito do público, elaborado com arroz envolto em alga e recheado com legumes e omelete, semelhante a um sushi.
Juvenal e Carla também foram convidados a almoçar. Fizeram o prato, e, como foi difícil engolir o tal do peixe cru. Juvenal embolava a porção de um lado para o outro da boca, e nada do dito cujo descer goela abaixo.
O casal, então resolveu fazer a própria comida. A atitude não foi muito bem vista pela comadre. Ela achava um despropósito, a comadre Carla fritar o peixe para comer. Mas, as filhas de Ana Woon Li, aprovaram totalmente, pois a cada refeição elas chegavam de mansinho no chalé dos piracicabanos para comer. E eram boas de garfo!
Bem, como tudo que é bom dura pouco, chegou o dia de voltar. E os homens perceberam o aumento considerável das malas e sacolas, agora repletas de lembranças para os amigos e familiares. A volta estava caminhando tudo como era esperado, o Juvenal vinha dirigindo com a sua calma habitual, então Roh Woon resolveu tomar o lugar do motorista, as mulheres ficaram apreensivas, mas como não podiam fazer nada, deram de ombros e fizeram o sinal da cruz. O homem de fato fazia o velocímetro subir além da marca permitida de velocidade.
Descendo a rodovia na altura de Taubaté, em uma curva acentuada a “Chevrolet_ Veraneio”, começou a serpentear na estrada, Roh Woon segurava firmemente no volante.
As mulheres e crianças choravam assustadas, com os precipícios nos dois lados da estrada, com muita determinação o motorista foi brecando até conseguir parar nos buracos, do tal do acostamento.
Foi um Deus nos acuda de cá, um salva quem puder de lá, junto com um coral de Vizê Maria, Mãe do Céu! Nosso Sinhô Zesus Kisto!
O primeiro a sair foi Juvenal e embasbacado constatou que havia quebrado a ponta de eixo das rodas traseiras da Veraneio. O homem estava branco como papel e sentiu que todos haviam recebido uma nova chance na vida, como era cético não pensou em milagres.
Os homens providenciaram a sinalização da estrada e ficaram a espera de alguma carona para levá-los até Taubaté para poderem procurar a peça para comprar, além de uma oficina, com um guincho para buscar a Veraneio para consertar.
Após 8 horas de procura pela peça e pela oficina, o guincho foi buscar o carro. As mulheres não sabiam mais o que fazer para controlar as crianças, umas choravam outras queriam ir ao banheiro, e assim, literalmente, o inferno estava instalado na vida das duas famílias.
Sem dúvida, o conserto somente seria feito de manhã. Como Taubaté estava um pouco distante Roh Woon resolveu que todos dormiriam na Veraneio, poupando-o de gastar ainda mais do que havia programado.
Foi uma idéia infeliz. A oficina era foco de pernilongos. As coceiras e os choros se generalizaram. Ana Woon, em seu português macarrônico murmurava um Deus nos acuda de cá, um salve quem puder de lá, juntamente com um coral de Vizê Maia, Mãe do Céu; Nosso Sinhô Zesus Kisto, da filharada, misturando os idiomas!
Mas, o compadre resolveu o problema acendendo um cigarro e pedindo para fumarem, matando assim, dois pernilongos com uma tragada só. É que quando Ana Woon e Carla fumavam o silêncio imperava e eles podiam dormir um pouco.
Sem dúvida, um desafio para as duas mulheres, pois nenhuma delas havia fumado ainda durante toda a vida. Com as primeiras tragadas afogaram e tossiram tudo o que tinham direito, depois de muitas lágrimas e tossidelas, cada uma delas pegou o jeito pela coisa, e, impregnaram a tal perua de fumaça.
Logo pela manhã o mecânico começou o concerto desmontando a Veraneio, e após oito intermináveis horas a perua estava pronta para voltar trazendo pais e crianças exaustas de tantas aventuras e desventuras!