A crônica
                      da garçonete



     Xingando a chuva que caía pra valer, entrei na livraria e pedi um cafezinho. A livraria serve café aos seus freguses  arrancando-lhes alguns centavos por um "menorzinho" sem leite. Pergunto:Não podia ser de graça? 
     Com Salvador, naquele começo de noite, debaixo d´água, eu não tinha mais dúvida  de que o inverno chegara na Bahia.  
     Para a Meteorologia, entretanto, a história era outra: todo aquele aguaceiro era consequência de uma frente fria que se instalara sobre a capital baiana; com dia e hora para se desfazer.
      Fugindo, também, da chuva, acompanhou-me, na busca de um abrigo seguro, uma belíssima jovem. Sem pestanejar, dei-lhe 22 anos de idade. Nada além disso.
     Ela entrou na livraria, quase correndo, e, na cantina, pediu um guaraná diet. Sua blusinha branca estava completamente encharcada. O que me permitiu admirar, com absoluta facilidade, os mamilos dos seus lindos seios, protegidos por um discreto sutiã bordado. Dois botões de rosa, imaginei...
     Segui-lhe os passos, e, até a acompanhei na compra de Anjos e Demônios, de Dan Brown. Depois, como que por encanto, ela desapareceu. Coisa de deusas... de fadas!
     Muito bem abrigado, comecei a ler as primeiras páginas de um livro de crônicas do Ferreira Gullar, que apanhara na prateleira dos últimos lançamentos, com a firme intenção de comprá-lo.
     Como a chuva não dava trégua, pedi outro cafezinho. Recomendei à simpática garçonete que o trouxesse um pouco mais forte e bem quentinho.
     Enquanto aguardava atendimento, pus o livro do Gullar de lado, e, me socorrendo de um guardanapo de papel, passei a rabiscar algumas linhas, que terminaram transformando-se numa crônica.
     Pelo rabo do olho, percebi que minha diligente e interessante garçonete - que exibia no peito um crachá com seu nome, Luiza - mostrava-se surpresa com aquele grisalho freguês escrevendo, sem parar, alguma coisa, num guardanapo, com o logotipo da casa.
     Depois de andar de um lado para o outro, ela  aproximou-se da minha mesinha com uma bandeja de inox e o café, exatamente como lhe pedira. 
     Sorridente, perguntou:
     - Senhor, mais alguma coisa?
     - Só a conta, meu anjo - respondi.
      Diante de sua discreta perplexidade, resolvi dizer-lhe que acabara de escrever uma crônica. E que, em alguns de seus parágrafos, ela aparecia de corpo inteiro...
    - Eu, senhor? 
    - Sim, você.
     Aprofundei o papo, confessando-lhe que tinha pelas garçonetes dos bares e restaurantes muito carinho, respeito e admiração. 
     E para não deixar parecer que fazia, apenas, um galanteio fuleiro, justifiquei: Oh! as garçonetes! Elas me dão a mordomia que eu não mereço.  
     Luiza arregalou seus pequeninos olhos negros, sorriu, e partiu pra outras mesas...      
      A chuva não parava; caía cada vez mais torrencial. Decidi enfrentar a procela; tinha  encontros marcados. Na saída, abracei Luiza, que continuava a espiar-me, com cuidadosa ternura...
      Na pressa, esqueci, sobre a mesa do café, a crônica que acabara de rabiscar. Se Luiza a encontrou, sobre ela, nunca me falou, nas vezes que votei à livraria.
    Talvez tenha preferido guardar, só para ela, o que de encantador pretendi dizer-lhe numa crônica escrita em noite de surpreendente tempestade...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 13/02/2006
Reeditado em 12/03/2020
Código do texto: T111439
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