Uma Noite de Cão
Surto de Leishmaniose no Lago Norte, bairro onde resido. Cerca de quarenta por cento dos exames realizados atestam positivo. Considerando que muitos cães morrem sem que sejam examinados e muitos veterinários não comunicam os resultados à Zoonoses pois isto implica no sacrifício do animal, esta percentagem pode ser muito maior. Pânico!
Resolvemos comprar, para nossas meninas, a coleira Excalibur, repelente do mosquito e de moscas, pulgas e carrapatos. Teoricamente, o único mecanismo realmente eficiente de prevenção.
Depois do banho, por volta das quatro da tarde, colocamos as tais coleiras. À noite, o marido comentou que elas pareciam incomodadas, coçando-se muito. Quando nos preparamos para dormir, começou. Elas dormem num colchãozinho, no nosso quarto, sob um edredom velho. Anita estava agitada, não arrumava posição. E, cada vez que saía da caminha, com as unhas batucando o piso de madeira, me acordava. Eu ia até lá, ajeitava o ninho para que ela pudesse deitar-se e a cobria. Mas era só eu retornar às minhas cobertas para ela novamente levantar-se, caminhando atarantada pelo quarto, os olhos arregalados. Por volta de uma da manhã, tirei as coleiras das duas, e desci com elas, para respirarem ar fresco, esvaziarem bexiga e tudo o mais que houvesse para ser esvaziado e voltei ao quarto, procurando acomodá-las da melhor forma possível, mas o ritual de inquietude canina se repetiu até, que, por volta das três da manhã resolvi levá-las ao veterinário.
No trajeto, completamente deserto àquela hora, cruzei com duas viaturas da polícia que passaram "voadas" por mim. Bateu aquela crise de machismo: o que é que eu estou fazendo, uma mulher, sexo frágil, rodando sozinha, às três da madrugada de segunda-feira, sujeita ao ataque de algum facínora, algum motorista alcoolizado e sem medo da lei seca, enquanto o marido ficou em casa, bem belo, de pijamas? Mas, ele está super-gripado e, como toda mãe, enchi-me de força e de coragem na defesa das minhas crias. É por isso que não posso ter filhos. Se fossem crianças de verdade, eu me tornaria um monstro ou um defunto, sei lá!
Há duas clínicas "vinte e quatro horas" próximas à minha casa. Na primeira, toquei o interfone e esperei algum tempo, sem resposta. Fui à segunda, então. Aliviada, vi que a sala estava toda iluminada, embora trancada. Bati no vidro, nada. Pensei em telefonar para ela, mas me dei conta de que havia esquecido o celular... Ih! O marido já deve estar doido me procurando. O telefone lá dentro começou a tocar. Acho que era ele. Ninguém apareceu. Desisti e voltei à primeira e toquei de novo. Desta vez, a veterinária atendeu. Examinou, disse que não era nada demais, que nunca havia registrado problemas de intoxicação com essa coleira, mas aplicou o antídoto assim mesmo: Diazepam. A cachorrinha, que normalmente já é tensa, no consultório veterinário fica dura como uma pedra. Uma pedra no terremoto, já que treme mais do que vara verde. Com a injeção porém, amoleceu e entregou-se, lânguida e relaxada ao meu abraço. Quando a levei para casa, dormiu logo. Oba! Vou dormir também! Não foi bem assim. Depois de tanta agitação, meu sono virou fumaça e nem eu nem o marido conseguimos pregar os olhos por um bom tempo. Quando, finalmente fui vencida pelo cansaço, eis que a Anita acorda de novo e reinicia o baticum das patinhas no piso. O marido desceu com elas, queria levá-las novamente à veterinária. Achei bobagem. A moça era nova, me pareceu insegura, consegui convencê-lo a deixar para levá-las mais tarde, após a mudança de turno e fui dormir com elas no sofá do outro quarto. Não dormi, claro. As duas não paravam e bastava uma se acalmar para a outra começar a se coçar e andar de um lado para o outro.
Quando o despertador cantou de galo fiz de conta que não era comigo. Como um zumbi, liguei pra chefe, contando toda a minha história triste e avisei que me atrasaria.
Depois desta noite de cão, inevitável um dia de gato. Basta uma réstia de sol para eu me esparramar e roncar.