A SENHORA MARIA

Estava lá escrita de maneira enfática, diante dos olhos astigmatizados de D. Maria, a seguinte frase: “A mulher honesta não tem história”. D. Maria empertigou-se, ajeitou os óculos, olhou para trás ( não para dentro de si) e sentiu-se uma mulher honesta.

Não durou muito essa empertigação, alguma coisa a perturbava e fazia com que ela não pudesse extasiar-se diante de sua descoberta. A que atribuir o desconforto? À sua virtuosa consciência? A sua alma? Mas ela, o invólucro dessas coisas, não era plácida? Destoante a inquietação, a confusão emergente.

Oh, a curiosidade das mulheres! Se havia algo latente dentro de si o queria fora! E D. Maria sentiu-se “garrafa de gênio”. E que o sabre cortasse o gargalo!

- Espaço para o gênio! Um amo pra servir! – exigiu o gênio – acrescentando: É preciso falar, é necessário mostrar-se, confessar-se, desnudar-se!

Mas, justifica D. Maria, com seu ar de senhôra parafraseando Jean Guiton: “amos há que convivemos todos os dias. E há também, outros que quase nunca convivemos, que contudo existem e que nós sabemos que os poderíamos encontrar. Parecem-se com aquelas pessoas que nunca vamos visitar, mas que nos fazem bem simplesmente porque existem, sabendo nós que teríamos senão que... abrir a porta para os encontrar”.

Escolhido o amo – aquele que faz bem porque existe – e escolhida a música de fundo: La Vie Breve – De Falla, começa o gênio o seu strip-tease...

Cai a primeira peça. Representa a sua tristeza diante de um amor que se foi; de braços estendidos e abraços vazios. Diante da vida, por não saber distinguir entre o viver e o existir, por não saber a que veio.

Cai a segunda peça. Representa a sua passividade diante da miséria humana, da dor, do desamor, da injustiça e da fome dos seus semelhantes.

Cai a terceira peça. Representa o seu apego ao amo, pelo seu saber, pelo que representa de bom na sua vida.

Finalmente, a apoteose! Cai a última peça. Diante do amo, o gênio desnudo. Não existe vergonha pelo ato. Mas existe tristeza no gênio. Tristeza por não ter história, por não saber ser honesto consigo mesmo, pelo vazio interior, por não ter inimigos, por não saber chorar, por não ter ambição, por não ter coragem, por não saber odiar, por não saber dizer um palavrão, por não saber ser gente.

Luzes acesas, cortinas cerradas, gênio na garrafa.

Quanto a dona Maria, continuará no seu mundo plácido...

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 04/08/2008
Reeditado em 04/08/2008
Código do texto: T1112401
Classificação de conteúdo: seguro