O fato e as versões
Texto:
Luiz Fernando Verissimo
Atirei um pau no gato-to. Não me pergunte por
Que. O gato estava ali e de repente eu quis mata-Io. Não sou urn homem violento, mas naquele instante me transfigurei. A gente não se conhece, não e mesmo? Somos o nosso maior mistério. Aquele gato não significava nada para mim. Verdade que não era um gato com um. Era um gato-to. Mas mesmo assim. Quando vi estava com o pau na Mao, fazendo mira. a gato-to ainda me olhou, viu que eu ia fazer e quis fugir Mas fui mais rápido. Atirei o pau no gato-to. E acer¬tei. Fiquei satisfeito-to. Era toda a agressividade retida dentro de mim, as frustrações da vida moderna, sei La. ou quem sabe a minha implidincia com gatos que na¬quele momento explodia numa ação irracional. Eu queria mata-Io. Sim, mata-Io.
Mas o gato-to não morreu-rreu-rreu. Se atirar um pau naquele gato e matá-Io Fosse me libertar, eu continuava prisioneiro das minhas frustrações. Nem matar um gato-to eu conseguia. Notei que todos em volta me
Olhavam de uma maneira estranha. Alguns com repro¬vação, outros com incompreensão. o que e que eu ti¬nha contra aquele pobre gato-to? Senti que precisava me justificar. Armava-se naquela praça um movimen¬to surdo de solidariedade ao gato-to. o gato-to talvez pertencesse a alguém. A uma das crianças. o pai da criança viria me pedir satisfações. Eu não tinha mais o que fazer além de ficar atirando paus nos gatos-tos dos outros?
- Desculpe, eu não sabia que o gato-to tinha dono. - E do meu garoto-to.
- Esta bem, desculpe -Olhe ai, ele não morreu¬
rreu-rreu.
A questão não e está. E que o gato-to e proprie¬dade privada. o senhor gostaria que eu andasse ati¬rando paus no que é seu?
- Eu já pedi desculpa.
- Desculpa nada vou chamar um guarda. Poderia complicar. Me vi sendo corrido da praça
Por bebes e babas indignados.
-é ele! É ele! Tara- do!
Como me justificar? Dizer que eu não estava mirando gato, estava mirando uma criança? As pessoas ficam mais indignadas com a violência
Contra animais do que contra crianças, que todas praticam. Acertei o gato-to por engano, foi isso. Não tinha intenção. Que¬ria acertar naquele chato de cabelo encaracolado. Olhei em volta, tentando encontrar uma cara compreensiva. Avistei Dona Chica, a do 712. Pelo menos era uma vi¬zinha, nos cumprimentávamos no elevador, ela me ouviria. Dona Chica tinha presenciado tudo.
Dona Chica-ca admirou-se-se com o berro, com o berro que o gato deu. Me disse que nunca tinha ouvido.
Coisa parecida. Se fosse um berro. Mas não, tinha sido um berro. De repente, tive uma revelação. Ali es¬tava a resposta. Sim, por isto tinha levantado a Mao contra semelhante e tentada mata-Io. Esta bem, um gato-to não era meu semelhante, mas era outro ser vivo. E eu, um partidário da não violência, atirara um pau no gato-to. Por quê? Porque desde pequeno aquela pergunta me atormentava: por que berro e não berro? Eu nunca encontrara berro em nenhum dicionário. Nada o justificava. E, no entanto, geração apos gera¬ção aprendia a mesma coisa, inocentemente. o berro, o berro que 0 gato deu. E naquele dia, naquela praça, eu subitamente vira a minha oportunidade de por tudo a prova. Avistara um gato-to, pegara um pau e atirara o pau no gato-to. Naquele instante perdia minha inocência.
Abandonava a teoria e passava a praticar a vida. Dona Chica-ca assegurou-me-me que o gato realmen¬te dera um berro. Eu estava contente. Não praticara um ate de selvageria, mas de rigorosa pesquisa científica. Pelo menos era isso que diria se alguém chamasse um guarda.
Mas as crianças logo se desinteressaram de mim, as babas viraram a cara e o próprio gato-to, que fugira para um matagal depois do berro, voltou sem me olhar e, aparentemente, sem ressentimentos. Quando subíamos no elevador Dona Chica-ca convidou-me-me a tomar qualquer coisa no seu apartamento e eu fui, que também não sou de ferro. Ou de ferro. Demorara um pouco, mas a minha infância tinha acaba-do.