ANJO OU DEMÔNIO?
O mundo pedia, media, exigia mudanças. As guerras confiscavam as almas dos jovens, o sangue escorria formando poças fétidas, maculando a terra. Moscas e larvas competiam entre si no corpo dos cadáveres, mutilados pelo inimigo. O país do Tio Sam, não media esforços em criar aparelhos de tortura e de morte. Mais de meio milhão de soldados vestidos e armados para matar e vencer!
Eu ali parada em frente ao espelho. Figura recheada de ossos, quase sem carne. Tal, qual o tubarão, eu tinha quatro fileiras de dentes, precisava urgente retirar duas, mas faltava dinheiro para a cirurgia.
A minha mãe insistia em dizer que eu estava linda naquele vestido branco, de corpete e saia pregueada. O tecido de algodão exalava limpeza, mesmo após tanto uso, era de piquet, cem por cento algodão. A fita amarela e branca corria no sentido longitudinal da cintura até o pescoço, brilhava na fita as estrelas douradas. Eu já não era mais soldado, depois da promoção estava um posto acima.
Os jornais do Brasil construíam manchetes mostrando o poderio militar norte-americano, uma delas escrevia em letras garrafais: “Estados Unidos investe mais de 250 bilhões de dólares no conflito do Vietnã”. A reportagem descrevia na frieza do papel, a insanidade dos norte-americanos. Contava dos helicópteros, usados pela primeira vez em uma guerra. As tropas se deslocavam com precisão para qualquer lugar do país, propiciando aos soldados participarem de mais combates do que os ocorridos na 2ª Guerra Mundial.
Desfilava como soldado, mas a guerra era santa. Eu era soldado de Cristo. De rabo de olho via a minha irmã também vestida como eu. Nossa! Como ela esbanjava boniteza! O oposto da minha esquálida figura, ela estava sempre recheada de carne, dentes quase perfeitos, um ou outro tinha pequenas manchas pretas. Ela não ia ao dentista de maneira alguma. Armava um berreiro ou fechava a boca. Nenhum dentista da cidade conseguia ir adiante ao seu tratamento. A minha mãe não escondia a sua predileção. Beijava muito mais a minha irmã. As poucas vezes que ela sentava, em algum intervalo dos seus inúmeros afazeres domésticos, chamava a minha irmã para ficar no seu colo.
_Poxa! Cristo deu tanta boniteza pra ela e pra mim nada. _ Esses pensamentos me enchiam de culpa. O pecado insistia em devorar o meu interior como os vermes os faziam na carcaça dos soldados.
Outra manchete dava a entender a vitória dos filhos do Tio Sam esclarecendo sem censura e compaixão. “Bombardeio sistemático sobre o Vietnã do Norte mata milhares de civis”.
Mas, os fatos reais mostravam a onda de ocupação imperialista estava sofrendo as investidas dos vietcongs, isto no ano de 1968. O exército norte-americano tinha como aliado o Exército do Vietnã do Sul, muito inferior à organização militar dos vietcongs. A verdade é que eram incapazes de fazer frente à guerrilha e muito menos o de evitar a entrada de armas, mantimentos e das centenas de guerrilheiros através das fronteiras com o Camboja e o Laos.
A procissão se aninhou junto ao andor e os batalhões de meninos e meninas soldados cantavam alto. “Levantai-vos, soldados de Cristo,. Sus, correi, sus, voai à vitória,. Desfraldando a bandeira da glória,. O pendão de Jesus Redentor! (...)”
Caminhavam todos por uma rua comprida, a qual parecia não ter fim. Na ladeira a respiração arfava o peito, me impedindo de cantar. A voz fraquejava e soava desafinada. A catequista pedia mais empolgação. _Solte a voz Matilde. _ Então, eu olhava para ela e avolumava o peito fingindo cantar.
A selva fechada e o calor de 40 graus concederam aos norte-vietnamitas a melhor das estratégias de guerrilha, aproveitando-se das vantagens geográficas e da estupidez, viciada pelo uso continuo de cerveja, uísque, LSD e da heroína dos soldados imperialistas. Verdadeiros abutres, colecionadores de pedaços de cadáveres das mutilações e decapitação dos soldados e civis vietnamitas.
O que restou do exército do Tio Sam? Mesmo indo além, com toda a sua carnificina foi obrigado a deixar o país aos poucos, com o rabo entre as pernas, levando para casa homens mutilados, viciados e enlouquecidos pela brutalidade. Isto tudo para manter uma suposta honra militar.
A alma gritava no meu peito. O mundo parecia tão sujo, carcomido pelo pecado, devorado pelas armas. Uma ânsia subiu pelo estomago e vomitei. Joguei fora enojada pedaços de carne putrefata, trêmula pensei nos corpos decompostos dos soldados mortos do outro lado do mundo.
A procissão ia a passo lento subindo e descendo ladeiras. Os fiéis caminhavam em fila indiana. O andor disputado por homens e mulheres balançava de um ombro para o outro, pendendo. Vez ou outras dálias ou rosas despencavam dos pés do santo, e antes de cair no calçamento da rua, algum fiel a segurava forte entre os dedos.
Prisões, torturas, desaparecimentos, mortes. Presença fatídica das ditaduras militares na América Latina. Ruindo, roendo, desprendendo do corpo os ideais contestadores dos jovens, jogando-os na sarjeta, do submundo, do crime político, enfim, o afã e o desejo de destruir o velho e impor o novo morriam com eles. A marca da fatalidade veio a 13 de dezembro de 1968, denominado de Ato Institucional Nº 5.
(...)Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado, (...)
_ “Eu confio em Nosso senhor com fé esperança e amor. Creio em Deus. (...) Eu espero salvar a minha alma, com o auxílio da graça de Deus. Cumprirei sempre os dez mandamentos, que me abrem as portas do céu.”
Inconsciente? Não o meu corpo ia cantando acompanhando o andor na procissão. Mas, e a alma? Ah! Essa parecia ainda ouvir no choro da minha tia o comunicado do sumiço de um primo distante. Distante? Nem tanto! Perguntas em murmúrios eram feitas e respondidas entre os dentes e soluços.
_Os homens, Cotinha. Foram na universidade do menino e o levaram embora! Como? Por quê? Vá, vá,vá! Aqueles schifezza umana! Ninguém sabe. Não deram explicação. Foram arrastando o nosso menino pelos cabelos. A família já o dá como morto. _ Angelina atormentada pelo acontecimento entremeava palavrões na conversa._ Lembra do filho do Profº Tancredo? Aquele que escrevia no jornal da faculdade? Pois é, foi entregue todo machucado. Enfiaram farpas de bambu embaixo das suas unhas. E essa foi a menor das maldades, daqueles schifezza umana. Dizem que ele confessou coisas que nunca fez. Cruzes! Esses milicos, putanos. Carregam a sede de sangue e poder em cada parte do organismo.
“Eu confio em Nosso senhor com fé esperança e amor. Creio em Deus”...
Queria tanto ser anjo. As asas parecem estar sempre prontas para voar. Os olhos desses seres alados carregam a paz. Mas, a minha mãe tem razão, anjo não pode pensar bobagem. Mentir então, de jeito algum.
Escutei o pai falar para a minha mãe.
_O golpe de Estado de 31 de março de 1964 carrega o medo no peito do brasileiro. Ele está sendo marcado por autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e para silenciar de vez, a voz dos jornalistas e intelectuais, criaram a tal da censura prévia aos meios de comunicação.
O mundo explodindo lá fora e esses pensamentos, que vão e vem, tal qual doença em meu cérebro. Dói! Mas, avoluma um prazer quase mórbido que me separa e diferencia da minha irmã, sempre marcada pela bondade, aos olhos da minha mãe. Posso escolher ser boa ou ser má?
Anjo é além de tudo amado pela mãe. Certeza! Olha a roupa tão alva e brilhante. Eles vão ganhar cartucho de doce no final da procissão. Também pudera eles não pensam em matar a irmã, só porque ela é a querida da mãe. Eu não posso ser anjo, acho que sou filha de criação? De onde tirei essa idéia?
Ah, ah! Já sei! Sou filha de uma família de ciganos. Por isso sei ler a sorte, sem ninguém ter me ensinado. Ler a sorte é algo bom ou ruim? Penso ser pecado. Arte do demônio! Por isso, não posso ter asas na procissão. Minha mãe esta coberta de razão. Ah! Meu Deus! Preciso me confessar.
_Padre daí-me sua benção porque pequei!
Enquanto isso, um tanque de guerra entra na praça quebrando tudo. E os milicos carregando armas destroem a liberdade de um povo e da jovem democracia do Brasil.