The Meaning of Life*

25/02/2008

Era uma noite quente e abafada, daquelas extremamente propícias para se degustar de uma boa cerveja gelada.

Tão propícia, que o despretensioso happy hour já adentrava a madrugada, e a conversa tomava rumos tanto quanto desconexos, certamente não recomendados pela Cruz Vermelha, Direitos Humanos ou Anistia Internacional.

Os demais, alguns dominados pelo cansaço, outros por certa submissão conjugal, já haviam retornado ao conforto e à tranqüilidade dos seus respectivos lares.

Mas não aqueles dois. Eram os últimos dos moicanos, e prosseguiam afoitos em suas prosas, discutindo acaloradamente sobre o aleatório, e entre um gole e outro, teorizando planos mirabolantes que certamente solucionariam grande parte dos problemas do mundo. Coisas de bar.

A pauta, que já passara por assuntos delicados, desde religião, auto-suficiência energética, auto-suficiência sexual, marcas de pasta de dente, até possíveis moldes deônticos do bar perfeito, começou a adentrar no obscuro terreno da metafísica, quando um dos jovens incautos começa:

- E o cara?

- O cara? Que cara? O garçom? Tem cerveja aí ainda, meu.

- Não, cara. Não to falando do garçom! Falei "o cara", bicho.

- Sei lá de que cara você tá falando, cara...

- Como assim, que cara? To falando "do cara", meu!

- Então... Esses dias picharam no muro do meu vizinho "Eu comi o cara!". É esse, o cara?

- Não, cacete... Nada a ver! To falando do criador! De Deus, seu animal!

- Ah, tá! Saquei. O cara. Mas o que tem o cara?

- Pois então. Tava pensando. Sei não, se esse cara existe mesmo.

- Como assim?

- Ah... Sei lá, meu chapa! Vai que é tudo invenção da rede globo, e o cara nem existe mesmo... Teoria da conspiração, sabe como?

- Ah, meu! Nem comece! Você já tá doidão!

- Doidão? Quem sabe... Mas convenhamos: Não existe nenhum bom argumento a favor "do cara". E nem venha com essa história de "fé"!

- Cara, fé demais não cheira bem!

- Tá engraçadão hoje, hein!? Tomou uma dose a mais de malandrol antes de sair de casa, galã? Comeu palhacitos, é? To falando sério, porra!

- Tá brabinha, nega? Mas então... Claro que existem argumentos. Bom... Devem existir argumentos!

- Por exemplo...?

- Ah, meu... Sei lá! A nanotecnologia, por exemplo! Um bagulho doido! Só Deus pra explicar uma parada assim!

- Tudo bem. Concordo que é um lance de outro mundo, coisa e tal. Mas no fundo, bem no fundo, não passa dum tacape, só que bem pequenininho, saca? Não prova, necessariamente, que "o cara" realmente exista.

- Vendo por este lado, até que você tá certo, meu... Um tacape pequenininho. Boa essa, hein...

Neste exato momento, passa ao lado deles uma moçoila esbelta, bem feita de corpo, de gingado sincopado e ancas largas, na direção do banheiro. Uma boa parideira, por assim dizer.

Por óbvio, dadas as circunstâncias, os dois protagonistas dão um breve intervalo em suas discussões intelectuais, a fim de aproveitarem a beleza da paisagem, quando um deles ainda comenta:

- Olha só... Que pitéu! Se essa mulher peidar num saco de confetes, é carnaval o ano inteiro, camarada!

Três minutos depois, quando eles conseguem parar de rir e recuperar o fôlego, o outro colega comenta:

- Boa! Essa foi muito boa! Da onde tirou essa, meu chapa?

- Ah... Escutei num bar, dia desses, e estava esperando uma boa oportunidade de usar.

O outro, ao dar mais uma checada no produto, que nessa hora voltava do banheiro, concordou, seguindo a presa com os olhos furtivos, num olhar de galanteio:

- Realmente, uma boa oportunidade. Boa. Muito boa mesmo!

- Então, cara! Ta aí a resposta! A mulher! Quer prova melhor do que esta? Só "o cara" pode ter criado um bagulho assim, tão perfeito.

- Hummmm... Realmente, é um bom argumento. Mas não sei não... Não é um troço exclusivo, saca? Todos os bichos têm suas fêmeas, e tal. E além disso, também temos que contar as barangas! Você que o diga, né...

- Ta bom! Agora falou o cara que nunca pegou uma baranga! Até parece...

- Peguei sim... Mas quem nunca pegou? É até bom, pra acabar com a urucubaca, meu! Moranguinho qualquer um come. Quero ver comer jaca podre! Aí tem que ser macho! Mas de qualquer forma, cai por terra o teu argumento, sobre a mulher...

- Verdade... Mas deve ter mais algum bom argumento, meu! É só pensar um pouco. Peraí...

- Pára com isso, cara. Vamos mudar de assunto, que o papo ta ficando sério demais! Vamos falar de coisa melhor! Que tal aquela estagiária nova do financeiro? Eu pegava, facinho, facinho... Já fiz coisa bem pior, e paguei, ainda por cima. E à vista!

- Cerveja!

- Cara, teu copo tá cheio ainda, seu bêbado!

- Não, seu imbecil! A cerveja! Essa é a resposta, não entende?

- Como assim?

- Cara, a cerveja só pode ser um troço divino, saca? Essa cor dourada, esse gostinho meio amargo... Hummmm! Essa é a prova de que Deus existe! Existe, e é gente fina. Só pode ser isso!

- Cacete... Nunca tinha pensado nisso. E sabe duma coisa? Acho que você tá certo, meu! Inspiração divina! Só pode ser...

- Devíamos escrever uma teoria sobre isso! Com certeza ia revolucionar o pensamento ocidental sobre religião!

- Verdade, cara! Mas e o pensamento oriental?

- Pô... Sei lá... Acho que lá só rola saquê, bicho.

- Verdade... Tinha esquecido.

- Mas pra quê tanto? Mudar o pensamento ocidental já tá de bom tamanho, meu! Ainda vamos ser famosos, cara! Tipo o Aristóteles, e esses caras aí, sabe como?

E assim a conversa continuou neste ritmo frenético por mais quinze minutos, até o namorado da moça das ancas largas, renomado professor de jiu-jitsu, pedir educadamente para os dois se retirarem do bar, a fim de evitar maiores constrangimentos. Pensando nos altos custos dos serviços odontológicos, e já demonstrando sinais de cansaço, os dois resolveram se ausentar do local, sem maiores delongas.

Assim que chegaram a seus respectivos lares, dormiram o sono dos justos, inundados com a felicidade plena de quem acaba de descobrir o sentido da vida. Dali pra frente, tudo ia ser diferente. O mundo fazia total sentido, e a resposta era simples: Cerveja.

A alegria foi suficiente para esquecerem que amanhã seria outro dia, dia útil, dia de labuta, e que a ebriedade genial daria vez ao mal-estar agudo, à aversão a luz, e à tontura generalizada, sintomas típicos do castigo divino, chamado ressaca.

Mas não importava. Aqueles instantes radiantes de felicidade extrema eram suficientes para compensar qualquer desgraça vindoura. Embora um ENO também ajude.

Naquele momento, logo antes de serem vencidos pelo sono, este moralista implacável, a vida se fez simples e compreensível. Saborosa e dourada, como uma boa cerveja, numa noite quente e abafada.

*Por coincidência, um ótimo filme.

Herr Brehm
Enviado por Herr Brehm em 01/08/2008
Código do texto: T1108320