Da canalhice intrínseca do ser humano

12/05/2008

O bar estava cheio, e os sons de copos tilintando, conversas animadas e risadas nada suaves já inundavam o ambiente, como sinal de que o grau etílico dos presentes já beirava o nível sete da escala Richter.

Ele, que àquelas horas já tinha o status quo de dono da festa, visto que ao menos oitenta por cento do quórum do boteco estava ali para comemorar a passagem de mais uma primavera em sua vida, já sentia na alma as benesses de uma ou outra cerveja, tomada entre um ou outro copo de vodka.

Assim, um tanto desnorteado, mas ainda assim cheio de contentamento, resolveu parar para observar a cena.

Ele realmente gostava de bares. Era um ambiente no qual se sentia extremamente confortável e bem-vindo, ainda mais ali, num ambiente repleto de amizades.

Aquele momento mágico, em que o tempo havia parado por alguns instantes, só foi quebrado por uma sensação ruim na garganta, uma coceira inconveniente, que foi logo diagnosticada como sede. Assim, ao ver seu caneco vazio, apressou-se em se deslocar até o balcão do bar, onde ficava a chopeira.

Porém, foi barrado durante o percurso por um de seus colegas, que até aquele momento conversava afoitamente com uma donzela desconhecida, com seus vinte e tantos anos, quiçá três décadas completas. A moça aparentava uma boa safra, e ao menos àquela altura da madrugada, parecia razoavelmente bem feita de corpo.

Logo, era mais do que suficiente para receber alguns galanteios.

Cabe lembrar que este colega sempre fora um notório entusiástico da sinceridade exacerbada, e levava isso ao limiar da ignorância. Por assim dizer, sempre teve uma opinião invariavelmente generalista e ortodoxa em relação às mulheres.

Trocando em miúdos, era um camarada tanto quanto machista, e, ao menos no tocante aos métodos de sedução do sexo oposto, certamente não era o melhor exemplo de conduta ética.

Então, eis que este certo colega (cuja identidade ficará incólume a fim de evitarmos quaisquer inconvenientes) exclama num tom que esbanjava sinceridade, resguardando certo ar de amargura:

- Meu chapa, olhe só! Ela não acredita... Mas pode falar a verdade: Sou ou não sou viúvo?

Ele, escutando tal despropósito (afinal de contas, o outro nunca havia sido casado), percebeu um sorriso sutil escapando no canto da boca do interlocutor, e captou a mensagem de imediato. Tomado de ímpeto teatral, sem nem pestanejar, responde-o com feição de reprovação:

- Quantas vezes eu já te falei pra esquecer este assunto, camarada!? Isso já aconteceu há quase um ano, e quando finalmente você resolve sair um pouco pra tomar uma cerveja e se divertir, começa a relembrar o passado! Eu sei que você gostava muito dela, mas não há mais o que se fazer! Bola pra frente, companheiro! Tente esquecer isso, cara!

A resposta do colega foi um olhar de gratidão seguido de um olhar de tristeza, este segundo dirigido à moça, que notoriamente acreditou na história e se arrependeu sinceramente de ter duvidado da viuvez alheia. Aliás, como ela poderia ter sido tão insensível?

Após a incrível demonstração de seus dotes teatrais na resposta, ele se retirou de perto do casal, a fim de extravasar todas as risadas que estavam presas em algum lugar entre a laringe e o esôfago, e para, enfim, abastecer seu caneco.

Para os que desejam testar a técnica, ficam algumas dicas.

Provavelmente um "Sim, ele é viúvo" já teria dado conta do recado, mas nessas horas convém fazer tudo parecer o mais real possível. Titubear? Jamais!

Segundo o próprio inventor, a teoria que subsidia o esquema é justamente a de que as mulheres não querem homens solteiros, por saberem que muito provavelmente são canalhas (como estatisticamente já devem ter comprovado); não querem homens casados, por terem certeza que são canalhas; e também não querem homens separados, visto que alguém já teria atestado a canalhice destes.

Assim, no rol de opções (ao menos das opções "standard", por assim dizer), a única modalidade realmente aceitável é a do sujeito "viúvo", pois já foi casado por livre e espontânea vontade uma vez (e, portanto, pode ser uma segunda vez), mas infelizmente, por um acaso do destino, teve a vida de sua companheira ceifada de modo trágico e injusto (há de se apimentar a história, de acordo com a capacidade criativa de cada um).

Cafajeste? Desprezível? Talvez...

De qualquer forma, quanto à eficácia do plano, tendo em vista a meta inicial, pode-se dizer que os resultados foram ótimos, tanto do ponto de vista lúdico quanto amoroso...

Herr Brehm
Enviado por Herr Brehm em 01/08/2008
Reeditado em 01/08/2008
Código do texto: T1108319