DE CISMA, PENSAMENTO E SONHO

A respeito da Natureza, do Desconhecido, cada um de nós, cisma e sonha à sua maneira. Sei de alguém que conheci nas páginas de “Os Trabalhadores do Mar”, romance de Victor Hugo, publicado no ano de 1866 e que se chama Gilliatt, com quem me identifico por cismar, pensar e sonhar como eu diante da imensidão do mar, E se o Giliatt aos olhos de alguns parecer um tresloucado, que assim eu seja vista também

Afirmava Gilliatt, e eu acredito,que tinha visto algumas vezes, na água do mar, completamente límpida, animais inesperados, de grandes dimensões, de formas diversas, os quais fora da água assemelhavam-se a cristal mole e, tornados à água, confundiam-se com ela pela identidade de transparência e de cor; disto concluía ele que, se a água era habitada por transparências vivas, bem podia ser que o ar fosse habitado por transparências igualmente vivas. Os pássaros não são os habitantes, são anfíbios do ar. Gilliatt não acreditava no ar deserto. Se o mar está cheio de criaturas, por que motivo a atmosfera está vazia?-Indagava. Criaturas cor do ar podem escapar aos nossos olhos por causa da luz; quem nos prova que estas criaturas não existem? A analogia indica que o ar deve ter os seus peixes, como o mar; os peixes do ar serão talvez diáfanos, beneficio da providência criadora, tanto a nosso favor, como a favor deles; deixando passar a luz através de sua forma, e não fazendo sombra, ficam ignorados de nós e nada poderemos saber. Gilliatt imaginava que, se se pudesse esvaziar a atmosfera, pescando-se no ar como num tanque, achar-se-ia uma porção de criaturas surpreendentes. E acrescentava ele na sua cisma, muitas coisas explicariam.

A cisma, que é o pensamento no estado nebuloso, confina com o sono e preocupa-se a respeito dele, como de sua própria fronteira. O ar habitado por transparência vivas seria o começo do Desconhecido; além abre-se a vasta porta do possível. Outros seres e outros fatos.

Nada sobrenatural; mas a continuação oculta da natureza,

Gilliatt era um observador estranho e fantástico. Chegava a observar o sono. O sono está em contato com o possível, que também chamamos o inverossímil. O mundo noturno é um mundo. A noite é um universo. O organismo material humano, sobre o qual pesa uma coluna atmosférica de 15 léguas de altura, chega à noite fatigado, cai de fraqueza, deita-se, repousa: fecham-se os olhos da carne: então, naquela cabeça adormecida, menos inerte do que se crê, abrem-se olhos, aparece o Desconhecido.As coisas sombrias do mundo ignorado tornam-se vizinhos do homem, ou porque as distâncias do abismo tenham crescimento visionário; parece que as criaturas invisíveis do espaço vêm contemplar-nos curiosas a respeito da criatura da terra; uma criação fantasma sobe e desce para nós, no meio de um crepúsculo; ante a nossa contemplação espectral, uma vida que não é a nossa agrega-se e dissolve-se, composta de nós mesmos e de um elemento estranho; e aquele que dorme, nem completo vidente, nem completo inconsciente, entrevê as animalidades estranhas , as vegetações extraordinárias, as cores lívidas, terríveis ou risonhas, as larvas, as máscaras, os rostos , as hidras, as confusões, os luares sem lua, as obscuras decomposições do prodígio, o crescer e o decrescer no meio da espessura turvada, a flutuação de formas nas trevas, todo esse mistério que chamamos sonho, e que não é mais do que a aproximação de uma realidade invisível.

Fica dito que o sonho é o aquário da noite.

Assim sonhava Gilliatt. Assim sonho eu.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 31/07/2008
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