MEU COMPANHEIRO

Meu companheiro

Deixara-o assim, esquecido, se empoeirando. Pudera, nunca mais o tinha visto tão próximo. Não mais havia sentido o seu aroma, seu aspecto meio decadente, suas pequenas partículas se evaporando no ar, brilhando no rastro de luz da janela, a estrutura cada vez mais frágil, como se braços e pernas se desmembrassem aos poucos, perdendo a coesão. Transformava-se, é claro, como todos os seres, ao longo do tempo. Percebia suas fraquezas, seu cheiro de coisa passada, água estagnada. Entretanto, tinha comigo, que ele não perdera as propriedades completamente. Não era aquele deus cheio de conteúdo do passado, mas ainda revelava integridade, força, sabor. Restava o dna de sua natureza. Produzia uma ternura intrínseca que arrepia os cabelos, pousar-lhe a mão, acariciar seu corpo em frangalhos, lendo nele os traços oníricos de outrora. Agora, sem a imensidade nem a vitalidade de sentimentos que naquele tempo, divisava. Não, acariciá-lo agora era palmilhar com cuidado sua existência e ver através dela os ecos há tanto esquecidos. Tão importante ainda é em minha vida, que passei a sonhar novamente. E bastou uma mão amiga para guardá-lo com cuidado, para protegê-lo das intempéries e do esquecimento. Tão frágil tem sido e tão forte o conhecera. Punha nele as esperanças, meus desejos mais íntimos, vontades secretas, liberdade indefinida. Cultivara consigo os melhores sonhos, alimentara sua fome de sentimentos, ferilizara suas raízes com o adubo forte da paixão, do desejo de extrapolar as idéias, expressar os pensamentos, revelar as intenções. Assim, portanto, fui alicerçando seu tronco, deixando-o robusto, majestoso, poderoso. Mesmo que vissem nele apenas um rascunho. Um amontoado de primícias que não dariam em nada. Apesar de tudo, imprimia nele toda a energia em seu coração aberto, seu cérebro em branco, esperando ansioso o preenchimento da razão, do sonho, da inteligência, da verdade, da mentira, da ficção, da realidade, da vida. Então regava com carinho suas primitivas folhas, assim verdes, enroladas uma na outra, agarrando-se à vida que brotava. Acariciava com cuidado seus brotos, examinava-lhe os fungos, os parasitas, os surrupiadores de idéias, os incrédulos de suas tramas, os irônicos e suas dúvidas. Na verdade, estava sempre ao meu lado. Nunca relegava qualquer trabalho mais afoito ou mais incisivo. Era meu companheiro de caminhada, de solidão, de infortúnio, dor, alegria, paixão. Amava-o em sua parceria constante, sua presença quieta, atenta, ouvinte. Quantas vezes, nele derramara lágrimas, maculando seu semblante, integrando-as em suas entranhas, dilacerando suas fibras, apagando seus traços. Também sorrira comigo, acompanhando-me em noites brilhantes, nas quais a alegria cantava por cantos desconhecidos, embrenhando-se em frestas jamais ousadas, espiando em fechaduras há tanto tempo cerradas. Ao seu lado, abria todas as portas, todas as passagens, todas as janelas ao vento, anunciando brisas matreiras que se enroscavam em meus cabelos, boca, e olhos circundados de estranha ironia. Uma ironia boa, faceira, de quem desconhece o mundo, mas descobre seus caminhos, palmilha ansioso e febril as vielas estreitas e ensolaradas dos dias felizes. Era assim, meu companheiro fiel, Sancho Pança folgazão e matreiro, acostumado a buscar o mundo sem qualquer envolvimento mais sério. Apoiava-me nele, para arregimentar meus sonhos. Um suporte onde as ilusões quase se transformavam de uma hora para outra, em pura realidade. Mas com o passar do tempo, o abandonara a sua própria sorte. Sentia pena dele, mas também não me acostumara a viver daquele jeito, iludido, achando que ainda acreditariam nele, como se carregasse consigo a verdade suprema. Bobo! A verdade era outra: palpável, cruel, única. Um só caminho, um só jeito padronizado de viver no senso comum, uma moral estrita e una. Um povo que caminha em uníssono, fingindo-se iguais. Amando igual, pensando igual, comendo igual, sofrendo igual. Afastei-me dele para sempre. Vez que outra, lembrava de seu jeito folgazão, companheiro, amigo. Mas só vez que outra. Logo esquecia e mergulhava no poderio do mercado, nas contas a pagar, na sobrevivência comezinha, no salve-se quem puder, na noite sem mistérios, no amor apenas comprado, na dor do dia a dia. Apenas um sonho enterrado. Uma morte rasteira, rasa, sem cova; adormecido no mundo dos iguais.

Até que a mão amiga, que guardou-o com carinho, que acalentou seus sonhos lá escondidos no fundo da gaveta, na última gota do varal, no desencadear das nuvens abstratas no céu. Assim, deitada na relva, descobrindo figuras, carneiros que voam, luas que se afastam, foguetes que somem no cosmo. Ah, aquela cauda brilhante dos cometas. Aquele pisca-pisca incessante dos pirilampos na noite escura. Aquele ar gelado, que estremece a espinha e arrepia os pelos dos braços, revelando as cores da infâncias, tão próximas, tão lúcidas, tão reais. Não deixou que secassem as lágrimas que mancharam sua face, seu corpo inteiro. Nem que amarelassem sua fisionomia. Nem que desatasse de vez os braços desmembrados do corpo, as mãos soltas, caídas, disformes. Não, ao contrário, colou-as com cuidado no gesso agregativo da recordação, da amizade, das lembranças doces de tempos já idos. Ajeitou seu corpinho frágil, guardou-o com cuidado em trajes bem confortáveis e o enviou de presente. Um presente que já era seu e que compartilhou tantos anos com o amigo. Por isso, essa mão amiga e carinhosa o devolveu, pesarosa, mas feliz, pois temia que se não o fizesse, nunca mais o veria interpretar o mundo daquele forma diferente, dissonante do senso comum, do padronizado, do tudo igual. Status quo mentiroso. Melhor mandá-lo de volta assim, embrulhado, com carinho, tendo o cuidado de não machucá-lo para que sirva de exemplo, de mudança do mundo.

Chegou-me deste modo, pelo correio. Arrumadinho, sem disfarces, sem máscaras, revelando um passado que pode ser o presente cultivado e renovado. Aqui está ele, em minhas mãos. Na testa, está escrito “ Meu Companheiro”. Como antigamente. Um retorno que identifica um rótulo novo, novas idéias e comportamentos. Sonhos renovados e garantidos. Sonhos tentados. Por fazer.

Assim chegou a minhas mãos, o velho caderno. Prenhe das velhas histórias, dos velhos textos com seus personagens e seus tramas, seu desejo intrínseco de observar e ser observado. Trouxe-me a esperança de voltar a escrever, não na alegoria infantil, mas com a verdade madura de meu coração, se é que se pode amadurecer nos sonhos. Verdade é que está aqui, ao meu lado, modelo de dias de verão, companheiro de jornadas, de dor e alegria. De lágrimas imergindo-se em suas fibras, mexendo com a estrutura, esmaecendo as cores, misturando as tintas. Está aqui, como um troféu, um farol iluminando o mar escuro, servindo de bússola a novos devaneios. Observo-lhe as páginas quase se desintegrando, amarelecidas, empoeiradas, manchadas, mas não mais o abandono. Fiel escudeiro nas novas investidas: viver só é possível sonhando. Assim, velho caderno, cujo nome “meu companheiro” me reporta à infância, deixa-me palmilhar como tu, aconchegado em mãos amigas, embalar o sonho que me atinge a alma.

(Recebi de volta de uma amiga e de um amigo, alguns cadernos em que escrevia, quando adolescente. Cadernos estes guardados com carinho para algum dia serem devolvidos. E o foram. Ângela e Paquito, meus colegas de escola, amigos de caminhada, que a vida de alguma forma nos separou, lembraram-se de mim, por tanto tempo. Meus reais companheiros.)

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 30/07/2008
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