"Simpaticíssimo" =Crônica do Cotidiano=
Simpaticíssimo. Não há outra maneira de descrever a simpatia daquele dono de bar a não ser usando um superlativo. Fiquei admirado com as boas maneiras dele desde o momento em que entrei no estabelecimento e pedi um copo de leite e um salgado qualquer. Tanto o copo quanto o pratinho do salgado vieram super limpos, com guardanapos de papel, e tudo servido de uma maneira atenciosa, solícita mesmo.
Na segunda vez que parei ali, o dono lembrou-se de mim, puxou conversa e acabamos batendo um papo maior do que meus compromissos me permitiam. Cara bom de papo...
Na terceira vez era um Dia dos Pais e ele não aceitou que eu pagasse a despesa. Disse que eu era como um pai para ele e que fazia questão de não receber. Achei estranho, mas não insisti em pagar para não ser mal educado. De repente arranjei um filho apenas uns dez anos mais novo que eu...
Lá pela quinta ou sexta vez que fui ao tal bar, meu irmão estava comigo e nós três pegamos um papo cheio de risadas, gozações, piadas trocadas e nos despedimos como velhos amigos.
Ao chegar à rua, já dentro do carro, eu disse ao meu irmão que o camarada era inteiramente louco. Meu irmão ficou indignado comigo:
- Pô, Fernando...O cara te trata super bem, tem a maior consideração com você e você diz que o cara é louco...Não dá pra entender, porra...
- Louco e perigoso. E bota louco nisso. Você não reparou no olhar dele? É o mesmo olhar de um certo presidente que nós tivemos há pouco tempo, meu. Quer apostar comigo que esse cara é louco de pedra?
- Só você mesmo pra dizer uma coisa dessas...Cara legal aquele. Acho que é uma tremenda injustiça da sua parte.
Infelizmente eu estava certo. Ou, usando outro superlativo, estava certíssimo.
Um dia cheguei ao tal bar, vi o “meu grande amigo” lá no fundo, em uma das mesas, e acompanhado de uma moça. Como não apareceu ninguém para me atender, cometi a imprudência de bater delicadamente no balcão e dizer em voz um pouquinho à toa mais alta:
- Ô de casa...Tem freguês no balcão...
Pra que que eu fiz isso? O homem se levantou com tanta violência que a mesa quase caiu em cima da moça e veio para o balcão em alta velocidade, com as mãos para cima, e trovejando em altíssimos brados:
- A escravidão já acabouuuuu!! A escravidão já acaboooouuuuu!! A escravidão já acabouuuuuuuuuuuuu!!!
A princípio achei que era apenas uma forma maluca de brincar, mas quando vi o sujeito babando e com os olhos arregalados e vermelhos de tanto ódio, temi pela minha integridade física. Sob todos os aspectos o cara era pelo menos cinqüenta por cento maior que eu. E louco, ainda por cima.
Fiquei estático, apenas olhando para ele, enquanto o maluco dava porradas incrivelmente violentas no balcão e repetia que a escravidão já havia acabado. Se alguém do bairro não sabia, naquele dia ficou sabendo. Que vozeirão!
Levei tanto susto que perdi a vontade de comer qualquer coisa e até hoje tenho dúvida se o que me impediu de sair correndo foi a dignidade ou o susto, o impacto do susto.
Felizmente, como eu era “um pai para ele”, acho que resolveu só bater no balcão e gritar desesperadamente, deixando que eu saísse vivo e apenas com os tímpanos abalados.
No outro dia aconselhei meu irmão a ir ao bar na hora em que o dono estivesse almoçando, bater no balcão com força e gritar bem alto: “Ô de casa, tem freguês no balcão...”. Depois desaconselhei. Minha mãe ficaria chateada comigo.
Caso verídico. Ocorrido em um bar da Vila Carioca, em
São Paulo.